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O 'novo mundo' de Catalau, ex-Golpe de Estado: entre a fé e as trevas

Combate Rock

30/06/2020 06h54

Marcelo Moreira

Foram anos fora dos palcos e da música. Sua dedicação era apenas ao púlpito, onde de vez em quando tocava violão e cantava. De bem com a vida, parecia ter encontrado a paz e espantado os fantasmas do passado.

André Marechal, também conhecido como Catalau, sentia-se bem no papel de pastor evangélico da igreja Bola de Neve, no litoral norte de São Paulo.

Quando o passando veio assombrá-lo novamente, anos atrás, estava preparado e não se intimidou com o chamado. Altivo e orgulhoso, deixou as restrições de lado e subiu algumas vezes ao palco para celebrar a música do Golpe de Estado, onde cantou por dez anos.

"Senti que era a hora", disse ao Combate Rock na época, em 2016, o primeiro veículo de imprensa a procurá-lo. "Nunca quis esconder ou limpar o meu passado. Apenas sobrevivi e escolhi um futuro diferente. Não me envergonho e construí outra vida. Cantar as músicas do Golpe de Estado não me incomoda. Será uma celebração."

Catalau foi ovacionado quando entrou no palco do primeiro show comemorativo de 30 anos do Golpe de Estado (FOTO: ARQUIVO PESSOAL/FACEBOOK/BRUNA MARECHAL)

Cumprindo a promessa, pastor André Marechal fez uma volta triunfal em show que se transformou em DVD, cantou em mais algumas datas e encerrou de vez sua participação no mundo da música. Voltou para a igreja e para o litoral norte de São Paulo e agora prega na Flórida, nos Estados Unidos.

Como cantor de rock, nos excitantes e tumultuados anos 80, encarnou o rock estar problemático e carente, com direito a todos os excessos como vocalista do Golpe de Estado.

Carismático, performático e genial, encarnava um misto de Jim Morrison, Robert Plant e Freddie Mercury. Cantava muito, mas dava muito trabalho, até que a década de excessos cobrou um preço alto e quase o matou. Foi o suficiente para largar tida uma vida e mergulhar na religião.

Foram quase 20 anos de silêncio ignorando as cobranças e recriminações dos "roqueiros" e dos "roquistas", com direito a patrulhamento de todos os lados. Catalau seguiu em frente e encontrou a paz, com direito a elogios e votos de sucesso de muitos amigos e fãs. Finalmente, parecia que estava bem.

De certa forma, a revelação de que Catalau é um fervoroso fã de Donld Trump, presidente dos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, surpreende e choca.

Na conversa com um repórter do UOL, ele admira dos dois e diz que odeia a mentira, por isso apoia Bolsonaro – aqui, certamente, Catalau demonstra total alheamento ao que acontece no Brasil e aos meios de comunicação daqui.

Por outro lado, ao se bandear para a religião evangélica, Catalau não surpreende ao aderir a demagogos populistas que usam a própria religião como muleta. Parte expressiva dos evangélicos no Brasil apoia o autoritário, moralista e protofascista Bolsonaro.

A questão é a seguinte: como um outrora carismático artista, bem informado e aparentemente aberto à diversidade e todo o tipo de liberdade, caiu na esparrela do populismo demagógico de direita?

Abraçar o conservadorismo não é o problema. Por mais que seja anacrônico e fora de propósito, ser roqueiro conservador e até de direita não é em si uma tragédia. Dá para entender, é compreesível e muitas vezes dá para tolerar.

O que não se admite é roqueiro fascista e apoiador de gente que o despreza, que o tem como inimigo e que certamente vai atentar contra ele, seja na parte artística, seja na parte de manutenção dos direitos civis.

Na triste entrevista para o UOL, Catalau reclama de "políticos mentirosos" e que admira a honestidade e Bolsonaro, "ainda que seja bem tosco". Claramente ignora os constantes ataques à democracia e à classe artística, bem como releva as declarações do presidente desprezando a liberdade de expressão e de imprensa.

Mesmo em seus tempos de excessos e de personificação de um rock star, Catalau se mostrava um artista sensível e antenado com seu tempo.

Desprezava o autoritarismo e repudiava qualquer tipo de patrulhamento. Já era uma pessoa espiritualizada e tinha profundo conhecimento filosófico sobre várias correntes de pensamento.

Frequentemente seus pensamentos divagavam em muitas direções, mas conseguia por muito tempo manter o foco. Muitas de suas letras para canções do Golpe de Estado mostravam essa visão de mundo mais ampla e plural.

Álbum "Nem Polícia, Nem Bandidio", do Golpe de Estado, lançado em 1989. Catalau é o de baixo, à direita

Se por um lado o mergulho profundo na religião e nas palavras de uma seita evangélica lhe salvou a vida e a transformou, resgatando-o do do fundo do poço, por outro é possível que esse mergulho lhe tenha turvado, de certa forma, a visão e o empurrado para um lado mais sombrio e escuro da realidade. É uma guinada por demais drástica em se tratando de um ex-artista amante diversidade e da liberdade.

Só isso é motivo para lamentar. Só que a coisa e mais complicada. Catalau demonstrou estar desinformado e não ligar para valores que outrora lhes eram caros. Releva o discurso de ódio de Bolsonaro e Trump e aplaude a política do confronto, o nacionalismo anacrônico e inútil e a discriminação contra vários setores da sociedade. Apoia gente que quer destruir as artes e a cultura.

A volta aos palcos para alguns shows com o Golpe de Estado foi apenas uma recaída nostálgica de um ex-artista meramente saudosista?

Tudo indica que sim. Catalau não está preocupado com a repercussão de suas possições políticas e seu apoio a políticos que defendem o oposto a tudo o que defendeu – da mesma forma que nunca se imposrtou com as críticas que recebeu quando largou o rock e abraçou Jesus.

O que mancha sua trajetória – mesmo que isso pouco lhe importe – é trocar ideais marcantes e enraizados por pensamentos e ideias improvisadas e sem lastro na inteligência, no bom senso e na pluralidade – e que, inacreditavelmente, colide com muio do que professa sua atual fé religiosa.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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