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Rock conservador tenta se justificar destilando mais ódio e preconceito

Combate Rock

27/04/2020 19h35

Marcelo Moreira

Nervosa tocando na Little Darling, São Bernardo, em novembro de 2017 (FOTO: MARCELO MOREIRA)

"Não adianta fazer cara de 'demônia' ou ter cabelo azul e vomitar qualquer coisa pra depois pagar de gostosa e estrelinha"

O edificante pensamento acima veio de um músico de uma banda bacana de metal extremo paulista que tocou com a Nervosa no pouco visto festival ocorrido em 27 de novembro de 2017 na casa Little Darling, em São Bernardo do Campo (ABC Paulista).

Ele se referiu, com menosprezo, ao trio Nervosa, que fechou a noite naquela data e que teve duas de suas musicistas anunciando que estão fora do trio neste último final de semana. Em relação aos cabelos azuis, a referência pouco elogiosa a Alisa White-Gluz, canadense, atual vocalista do Arch Enemy.

O cidadão não gostou da referência ao festival de 2017 quando escrevi sobre a vergonhosa reação dos metaleiros misóginos e preconceituosos à separação da Nervosa. Ele tocou antes das meninas no dia e achou um, absurdo que elas fechassem o evento.

A conversa foi privada, mas ele sabia que eu abordaria o conteúdo por conta de o assunto estar "quente". Provavelmente, foi essa a intenção. Tentou se explicar e "garantir" o seu direito à opinião, ainda que comprove o comportamento vergonhoso de muita gente.

"Não sou obrigado a gostar de uma porcaria de banda de umas menininhas metidas a besta e sem história no metal. Hoje qualquer um toca no Rock in Rio, é só pagar. Ainda mais se forem gostosinhas e forem incensadas por meia dúzia de jornalistas, como você [muito obrigado pela deferência e por exagerar a minha credibilidade e importância!!!!]", vociferou o cidadão, que é um amigo ocasional e que, como eu esperava, voltou a entrar em contato para pedir que eu não usasse essas informações em texto. Neste caso, vou desrespeitar a sua vontade, mas preservando a identidade sua e a da banda.

Foi um pouco difícil entender a motivação do cara ao entrar em contato. Se ele queria justificar e defender o comportamento asqueroso dispensado às meninas da Nervosa, errou totalmente. Só reforçou a postura nojenta que os tiozões cinquentões tiveram naquele dia e que, pelo jeito, continuam manifestando.

É obvio que ninguém precisa gostar do que quer que seja ou de quem quer que seja. O absurdo é a total falta de respeito para com uma que é melhor e mais famosa do que a dele. Que ache o som péssimo e que elas tocam mal, ok, faz parte, mas disseminar excrementos verbais chamando-as de "vagabinhas incapazes de tocar direito" e "barbiezinhas que deviam estar brincando de bonecas ou no show do Menudo" é mais do que ignorância, é deformação de caráter (li essas duas bobagens em comentários em posts aleatórios no Facebook).

Outras pérolas do tipo estão espalhadas pelas redes sociais revelando machismo, misoginia, preconceito e muita inveja. O músico que me contatou arrematou: "Essas meninas acham que são alguma coisa. precisam comer muita grama para almejar algo, precisam ser humildes e beijar os pés de caras como os do Korzus e de muitas outras que estão na batalha. Só têm o cartaz que têm porque são um trio de menininhas bonitinhas e só."

O discurso foi invertido: as condições para bandas formadas por mulheres sempre foram as piores em todos os sentidos em toda a história – basta ler a história de Runaways, Girlschool, Vixen, Crucified Barbara, Mercenárias, Volkana, Sempre Livre e muitas outras – e agora o cara tem a coragem de dizer que a Nervosa só atingiu o status atual porque são mulheres!!!!!!!

Eu gostaria de dizer que esse pensamento medieval está restrito a uma minoria rancorosa e ressentida de músicos cinquentões que não obtiveram o devido reconhecimento – seja por miopia do mercado, seja por falta de qualidade de suas bandas. Esses caras são minoria, mas não poucos e, infelizmente, são estridentes.

Nervosa (FOTO: DIVULGAÇÃO)

De forma infantil, comemoraram a separação da Nervosa e destilaram os piores ódios e sentimentos ruins para demonstrar falta de empatia e indigência intelectual.

O tiozões cinquentões ressentidos reverberam um sentimento meio que generalizado de uma parcela de músicos e fãs de rock/metal que se julgam "trues": acham-se "roqueiros de raiz", "guardiões da verdade e da história", "defensores de um legado que não pode ser conspurcado por três bonequinhas brincando de fazer thrash".

Não é coincidência que parte expressiva dessa gente seja muito conservadora nos costumes e na política. Não é coincidência que esse pessoal tenha dificuldade em lidar com o diferente, com o amplo e com o divergente. Fazem parte daquele time de dinossauros, mesmo que seja jovem, que adora dizer que "o Metallica só foi bom até o 'Master of Puppets' (1986), o Deep Purple acabou após o 'Machine Head' (1972), não existe Black Sabbath em Ozzy Osbourne".

Tudo isso dá para deixar passar ou mesmo ignorar. Falta de respeito sempre acompanhou a humanidade desde sempre.

A qualidade e a motivação dos insultos e xingamentos, no entanto, revelam uma deformação de caráter, uma falência moral e uma total pobreza de que horrorizam por se tratar de um meio em que deveria predominar a fraternidade, a solidariedade e pensamentos mais progressistas – no sentido de valorização de trabalhos diversos e de respeito ao processo criativo sem que isso implique gostar ou não, criticar ou não.

É desesperador observar moleques agindo como aquele tio gordo e careca que vota na extrema-direita, odeia pobres e acha que mulher só serve pra fazer – e que vomita isso nas festas de família e no boteco do bairro: "A banda tal era uma das melhores de todos os tempos até começar a fazer sucesso. A partir de então se vendeu, ficou um lixo…"

A maciço apoio que a Nervosa recebeu quando de seu show no Rock in Rio 2019, com um público grande às 15h, iludiu boa parte daqueles que achavam que um dia haveria uma mudança importante de comportamento dentro do rock nacional no quesito respeito e confiança.

O "mercado/meio" conservador ainda vive sob as nuvens pesadas do pensamento tacanha e conservador. Não é coincidência que esse tipo de postura, antes oculta por conta de uma certa vergonha, esteja cada vez mais explícita em tempos de governo federal ultraconservador de inspiração fascista, revelando que o número de gente que professa ideias do tipo censura às artes, ataques à cultura, restrição à liberdade de expressão e coisas igualmente abjetas.

O músico que descascou a Nervosa no começo do texto de forma preconceituosa, misógina e invejosa é o retrato acabado desse ser que se acha "guardião da pureza do rock", incapaz de olhar para frente e de entender, por exemplo, que existe um Sepultura depois da saída de Max Cavalera e um Angra depois de André Matos.

Ok, podemos até admitir que alguém pense dessa form, faz parte. O que incomoda, entretanto, é o extremo desrespeito que predomina em nosso meio e em nossa sociedade, onde o desmoronamento é comemorado, o agravamento de situações é celebrado, evidenciando motivações torpes e nada edificantes.

Esses seres destituídos de sensibilidade e de inteligência refinada, infelizmente, não são poucos, como estamos vendo nestes tempos bolsonaros, mas não podem ser a maioria e jamais serão. É chato , não contávamos com isso, vai dar um pouco mais de trabalho, mas vamos sair dessa e vamos atropelar esse tipo de oposição.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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