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Implosão da Nervosa expõe o pântano cheio do lodo do rock nacional

Combate Rock

26/04/2020 14h14

Marcelo Moreira

Não é coincidência que a banda Nervosa tenha implodido em plena quarentena do coronavírus e em meio a mais uma crise política grave envolvendo o nefasto presidente da República. Direta ou indiretamente, é reflexo de nossos tempos confusos e tristes e simboliza o colapso social em que vivemos.

As três integrantes, individualmente, publicaram textos nas redes sociais informando das saídas de Fernanda Lira (baixo e vocal) e Luana Dametto (bateria), restando somente a fundadora, a guitarrista Prika Amaral.

Em meio a textos vagos, laudatórios e de cunho de autoajuda, somente a guitarrista tocou, de leve, nos motivos que levaram às defecções: "as coisas já não vinham bem há algum tempo, não havia mais a mesma chama no palco".

Aos desgastes internos somam-se alguns problemas externos que não podem ser ignorados – machismo, oportunismo chauvinismo, preconceito e muita, muita inveja do sucesso que estava chegando.

Desde sempre o trio feminino paulista foi alvo de comentários desabonadores, sexistas e de profundo desrespeito, algo que não é incomum no rock mundial e que é arraigado na América Latina.

Nervosa em sua última formação: Prika Amaral (esq.), Luana Dametto (centro) e Fernanda Lira (FOTO: DIVULGAÇÃO/ROCK MEETING)

Enquanto a formação resistia e fazia turnês europeias e nortes-americanas, com direito a show elogiado no Rock in Rio 2019, era possível equilibrar os ataques machistas, sexistas e políticos com doses maciças de garra e de um "deixa para lá".

O anúncio das saídas das musicistas, entretanto, fez emergir novamente toda a podridão que domina a nossa sociedade desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em que o pior de nossa falta de educação e falta de respeito vem à tona.

Desde Janis Joplin e as Runaways que as mulheres sempre tiveram que provar muito a mais para se manter na música pop, resistindo a todo tipo de assédio e ataques baixos. Umas lidam melhor com isso, como Joan Jett e Chryssie Hynde (Pretenders), outras sofrem bastante, como Wendy O. Williams (Plasmatics) e algumas das meninas do Girlschool.

Não tinha como ser diferente aqui no Brasil, uma terra subdesenvolvida que herdou o pior da cultura ibero-americana e os piores vícios da sociedade machista escravocrata misógina portuguesa.

Inacreditavelmente, a sociedade brasileira incorporou o que de pior a vida soviética impôs aos seus cidadãos, com um tempero de culpa católica: a inveja extrema do sucesso alheio e a tese de que a vida boa do vizinho é pecado e tem de ser atacada.

Tibet, do Ajna, as meninas das Mercenárias e Volkana e muitas, muitas outras do rock sentiram isso na pele, mas provavelmente nenhuma banda com tanta intensidade como a Nervosa.

Os perrengues que o trio sempre passou na vida foram contados pelas meninas em texto do G1 por ocasião do Rock in Rio. E agora, com a separação, o esgoto emergiu com tal virulência que causa vergonha mesmo nos meios mais nojentos, como os da extrema-direita.

Se fosse só a inveja, vá lá, poderíamos até ignorar, como as meninas o fizeram em um minifestival de metal em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, no final de 2017.

Fechando o evento que teve bandas veteranas importantes da região, como Necromancia e MX, elas foram satirizadas e sofreram com o deboche de um grupo numeroso de roqueiros cinquentões que mal conheciam a banda e que preferiram "destacar" a beleza e o suposto apelo sexual das três com palavrões e todo o tipo de insulto. Pura inveja de quem não admitia que o som delas era bom e melhor do que os das bandas que as antecederam.

Mas não dá para ignorar o fato de que elas assumiram a linha de frente com um discurso elogiável e necessário de empoderamento feminino e de apoio aos direitos humanos e civis – sim, com acento esquerdista, mas ainda assim causas louváveis em um país que tem polícias assassinas, com uma desigualdade social obscena e com uma pobreza gigantesca.

Fernanda Lira durante show no Rock in Rio 2019 (FOTO: REPRODUÇÃO/MULTISHOW)

Não dá para saber, ao certo, qual o preço que elas pagaram pelo posicionamento engajado, feminista e de esquerda. Só elas podem revelar o quanto isso influenciou na separação da atual formação. Mas é possível ter uma ideia de como os ataques misóginos, sexistas, políticos e de inveja incomodaram durante todos esses anos. Os textos das três transpiram isso, de forma velada.

Especificamente dentro da comunidade roqueira brasileira, que parece ter encolhido não só em número, mas também no cérebro, na capacidade de pensar, a reação abjeta dos ultraconservadores e estúpidos foi maior do que se esperava.

O ressentimento e a inveja ficaram evidentes não só nas várias "comemorações" da separação, mas principalmente nos palavrões e nas "análises" da "péssima música que faziam".

Houve pérolas nas redes sociais com os indefectíveis "trocar sexo por benefícios musicais e fonográficos não garante mais nada"e coisas nojentas desse tipo.

Os ataques ao posicionamento político-social do trio também foi alvo de ataques pesados e insanos, quase todos desprovidos de estofo intelectual e informação.

O lixo político ultraconservador e de viés criminoso que apoia o criminoso presidente da República deu as caras empesteando todos os ambientes com seu vômito de cunho medieval, só faltando dizer que as mulheres têm de deixar o palco e voltar para casa para lavar louças.

O fim dessa formação da Nervosa concentrou em um único evento toda a torpeza e baixeza que domina o rock/metal nacional em tempos de polarização política, onde uma parcela bastante expressiva do público, de forma asquerosa, defende posições autoritárias, censura, restrições às liberdades e a violência contra opositores e adversários político-sociais.

As manifestações vergonhosas contra a Nervosa demonstram uma pequenez e uma deformação de caráter gritantes, mas também escancaram o medo que essa gente tem do progressismo e das mudanças sociais inevitáveis que a nossa sociedade está sofrendo há anos.

Nervosa é um dos símbolos dessa mudança e do triunfo das ideias modernas humanistas, de valorização da mulher e de resistência contra a violência sistemática que as "minorias" ainda estão submetidas.

Por conta disso, não há dúvidas de que a banda venceu e que se tornou bastante relevante no rock nacional. Quanto aos lixos humanos que se regozijam com a turbulência da Nervosa, restará somente uma felicidade muito passageira antes que submerjam novamente no esgoto de onde vieram.

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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