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Com 'Quadra', Sepultura inaugura nova era e aponta o futuro do metal

Combate Rock

03/02/2020 06h39

Marcelo Moreira

Em qualquer atividade, as pessoas lutam desesperadamente para serem as melhores, ou as maiores. Entretanto, as que pretendem ser as diferentes, e não necessariamente as melhores, colhem os frutos mais duradouros de seus trabalhos – sem contar que se tornar o "melhor" em sua atividade é consequência de uma sequência de trabalho.

O Sepultura goza de uma situação muito confortável e, paradoxalmente, perigosa após 36 anos de carreira: é suficientemente grande para ter cacife e apostar alto em novos trabalhos, mas também é suficientemente importante para, eventualmente, acreditar que é possível dar uma "segurada" no ímpeto e se acomodar nos louros do passado.

Se alguém tinha dúvidas de que o quarteto brasileiro tinha algo a provar, permanentemente, desde a separação com Max Cavalera, em 1996, elas diminuíram após o lançamento de "Kairos", em 2011, e acabaram com "Machine Messiah", de 2017.

Qual seria o passo seguinte? "Fazer o melhor disco que pudermos fazer desde sempre", disse Andreas Kisser, o guitarrista e líder da banda no ano passado, durante o lançamento do álbum "MMXIX", do Sioux 66, que tem o filho Yohan como guitarrista.

A cartilha do Sepultura sempre teve a palavra inovar na linha de frente desde o lançamento de "Chaos A.D.", lá nos anos 90. "Roots" deu o tom do que poderia vir em 1996, algo revolucionário e totalmente diferente, mas a separação de Max e o restante da banda travou a evolução.

Persistentes, Kisser e Paulo Jr reconstruíram o Sepultura (com uma ajuda de Iggor Cavalera até 2006, quando saiu) até implantarem um conceito bem definido e bem acabado.

"Quadra", o novo álbum lançado em fevereiro de 2020, é um novo recomeço para um combo que precisou se reinventar sempre tendo a sobra da "formação" clássica pairando desde sempre, seja por conta do saudosismo, seja por conta dos insuportáveis boatos de "reunião" com os irmãos Max e Iggor Cavalera.

A cada investida de saudosistas e viúvas do antigo Sepultura, o atual quarteto responde com um um CD e músicas novas estupendas e mais instigantes, ainda que tenham abandonado aquela mania de  muitas de bandas de quererem "conquistar" o  mundo.

O mundo não precisa ser mais conquistado pela enésima vez pelo Sepultura. Inscrito na história ao lado dos gigantes do rock peado e do metal extremo, o Sepultura luta para se tornar relevante em um mundo musical em constante mutação, onde o compromisso do fã/ouvinte não é o mesmo do passado e onde a urgência do que se ouve do que se produz define carreiras e o futuro de trabalhos.

Em matéria de continuar relevante, o Sepultura é mestre. "Machine Messiah" parecia, de uma certa forma, encerrar uma era em que a música extrema sofisticada e cativante chegava a um ponto de exaustão.

É um CD onde o metal progressivo conviveu harmoniosamente com o death metal de sempre, com arranjos criativos e soluções inusitadas para canções que tendiam a cair no beco sem saída do metal derivativo que se encerrava em si mesmo na primeira década do século XXI.

"Machine Messiah" quebrou esse paradigma, avançou em certos limites, e mostrou caminhos, ao mesmo tempo em que colocou algumas perguntas a respeito do futuro: se não mudou os rumos do metal e estabeleceu novos paradigmas, o álbum expandiu as já largas opções que o Sepultura buscou.

O que era necessário para que a música do grupo continuasse cativante e com altas doses de inovação e surpresa?

Sepultura (FOTO: DIVULGAÇÃO)

"Quadra" é a resposta. Focado, mas descontraído, é um álbum que sintetiza uma era e inaugura outra. É ainda mais diversificado do que o anterior, só que voltado para a frente. Olha para o futuro, mira lá na frente, e acerta todos os alvos.

O Sepultura não abandonou o metal progressivo, longe disso, mas o foco passou a ser a experimentação. Isso não significa a maluquice de gravar e selecionar qualquer barulho o sequência melódica. Experimentar aqui significa avançar.

"Quadra" tem proposta conceitual, o que segue o que a banda vinha oferecendo desde "Kairos", pelo menos.

A capa foi criada pelo artista Christiano Menezes, da Darkside Books. Segundo Kiesser, "representa as diferentes regiões, fronteiras, tradições que todos nós viemos e tivemos durante o nosso processo de vida".

Na busca por um sentido em um mundo cada vez mais tecnológico e voltado para o consumo e para a o indivíduo, , abnada busca estabelecer o que tá em jogo Na verdade, quer deixar claras as regras o jogo. "Olhe para a moeda. Você dá importância ao dinheiro? Ele não está presente apenas na capa, mas na cabeça de todo mundo. Seja a regra do seu próprio jogo!", diz a banda em nota sobre a obra.

"Em português, além de outros significados, 'Quadra' significa 'quadra esportiva': uma área terrestre limitada, com demarcações, onde um jogo acontece com suas determinadas regras. Somos de diferentes 'Quadras'. Todos os países têm fronteiras, tradições, cultura, religiões, leis, educação e um conjunto de regras onde a vida acontece", diz.

O músico completa: "Nossas personalidades, o que acreditamos, como vivemos, como construímos sociedades e relacionamentos… tudo depende desse conjunto de regras com as quais crescemos. Conceitos de criação, deuses, morte e ética. Somos escravizados pelo conceito do dinheiro. Quem é pobre ou rico, é assim que medimos pessoas e bens. Independentemente de sua 'Quadra', você precisa de dinheiro para sobreviver. É a regra principal do jogo 'vida"'.

A guitarra de Andreas Kisser, dá as cartas, como sempre, mas parece embebida de novas aspirações. O contexto requer uma comparação com as texturas e as investidas de Alex Skolnick (Testament) no campo das melodias rápidas e pesadas, mas flutuando entre o jazz e o heavy metal tradicional.

Se "Machine Massiah" tinha impressionado pela agressividade em meio a um universo musical mais denso e diversificado, "Quadra" avança em um campo onde não se esperava que o Sepultura passeasse com desenvoltura: música regional brasileira encharcada de timbres de guitarra distorcidos a ponto de fazer tremer pareces com um sotaque muito além do que estávamos acostumados a escutar em álbuns anteriores.

"Quadra/Agony Of Defeat" talvez sintetize o que o disco propõe, uma música extraordinária da música regionalbrasileira interiorana ao mais intenso heavy metal tradicional calcado em guitarras soberbas e um vocal que estremece qualquer estrutura.

O progressivo mantém os dois pés fincados no gênero na melhor música do álbum, "Guardians of Earth", com sua introdução que mistura música brasileira e erudita para mergulhar em um caos sonoro que nem soa tão extremo, mas que define com exatidão o que a banda pretende.

O Sepultura continua soando extremo e violento, especialmente nas músicas que abrem o álbum, mas é possível observar que os horizontes estão mais largos e mais extensos.

"Isolation" e "Means to An End" remetem a um passado nem tão longínquo, com o death metal mais exacerbado e uma timbragem de guitarra que mostram uma influência recuperada do metal extremo dos anos 80.

Como uma porrada na cara, os riffs estupendos que lembram Testament e Death Angel estapeiam o ouvinte e empurram o som muito para a frente, fazendo com que "Last Time" comece a transição para uma outra parte do álbum, a mais progressiva, introspectiva e, paradoxalmente, mais brutal.

"Capital Enslavement" é a música mais intensa e diferente, agregando novos ritmos e influências, passando do jazz para a música extrema sem delicadeza, mas com extrema competência, algo que pode ser observado também em "Ali".

Nesta canção, que conjuga elementos de música do Oriente Médio e arranjos orientais mesclados com uma guitarra pesadíssima, percebemos uma diversidade vocal de Derrick Green que espantam qualquer restrição a sua capacidade interpretativa.

A dupla que fecha o álbum, "Agony of Defeat e "Fear; Pain; Chaos; Suffering", mostra um lado desconhecido do Sepultura, a vocação para compor músicas épicas.

As duas canções se completam, dentro de uma aura de virtuosismo em que o baterista Eloy Casagrande voa de uma maneira quase inacreditável. Aqui parece que o grupo decidiu dizer para todos: "Sempre teremos que provar algo a todos, mas tomem um pouquinho disso para perceber do que ainda somos capazes".

Na contramão da história, o Sepultura parece querer provar que está cada vez melhor. Enquanto bandas precisam suar e batalhar por anos para mostrar novas músicas apenas razoáveis, o grupo brasileiro passeia e lança um álbum melhor do que o outro.

"Quadra" é, até aqui, o melhor CD da banda desde que Derrick Green entrou, em 1998. Não só isso, é um dos grandes álbuns de metal do mundo desde 2015, pelo menos. Nenhum grupo foi tão ousado e tão inovador no período quanto o Sepultura em seus dois últimos álbuns.

É um trabalho intenso e denso, mas que transmite certa descontração típica de artistas seguros e confiantes de que conseguem manter o alto nível para entregar músicas instigantes e de muito boa qualidade. O Sepultura, mesmo veterano, ainda é um farol para futuro do metal.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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