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'Tommy', 50 anos: quando 'finalmente' o rock vira 'arte'

Combate Rock

21/12/2019 06h10

Marcelo Moreira

O guitarrista metido a gênio tinha sumido do convívio dos amigos de bar e de banda. Apareceu apenas para a gravação do programa de TV dos chapas Rolling Stones no fim do ano e voltou para o casulo. Os boatos era de que ele estava enfurnado no estúdio caseiro criando aquela que seria a grande obra-prima do Who e do rock.

E isso provocava um certo temor no vocalista Roger Daltrey. "O que esse cara está inventando agora?", perguntou-se ele certa vez, de acordo com um depoimento bem humorado concedido a um documentário sobre a banda.

Quando o guitarrista e principal compositor Pete Townshend saiu da hibernação com o esboço do próximo trabalho da banda, provocou estupefação. Na reunião dos integrantes, empresários e produtor, todo mundo se olhou e ficou com cara de interrogação. Pete tinha pirado?

Entusiasmado, o guitarrista narrava o enredo do álbum duplo que pretendia gravar: a história de um menino que fica surdo, cego e mudo depois de presenciar o assassinato do amante da mãe pelo próprio pai, que voltara inesperadamente da guerra após ser dado como morto.

Criado com dificuldade por conta das limitações físicas e sensoriais e maltratado por parentes e pelo próprio pai, acaba desenvolvendo um talento inacreditável para jogar fliperama (pinball) até virar campeão mundial.

Idolatrado como "esportista", acaba sendo "vítima de uma iluminação mística" que lhe restitui todos os sentidos. Ten do recebido um "milagre", abandona o esporte e a família e vira um líder de uma seita religiosa e almeja se tornar um "deus" vivo, até que percebe que sua "empreitada" foi corroída por toda a sorte de pecados.

"Tommy" era ambiciosa como obra de arte conceitual e musical, com arranjos complicados de inspiração erudita e passagens quase impossíveis de musicar. Era uma ópera em formato de rock, a primeira da história (ou assim eles pensavam que seria).

Todos se entreolharam e se perguntavam, com os olhos, quem seria o primeiro a tirar sarro ou a contestar a viabilidade do projeto. Demorou meia hora de silêncio e amenidades até que o empresário Kit Lambert, calmamente, começasse a enuimerar as dificuldades para executar o projeto.

Preparado, Townshend rebateu todas as perguntas que tinham o objetivo de abordar a ideia e reveter o ceticismo dos companheiros, com  direito a certa irritação com as tiradas irônicas do baixista John Entwistle.

Essa foi a primeira de muitas batalhas  para que a ópera-rock "Tommy" fosse gravada e lançada em 1969. Há 50 anos, a teimosia e persistência de Pete Townshend foram cruciais para que uma das obras mais importantes da múdica pop fosse concebida contra todos os prognósticos.

Era um projeto arriscadíssimo para uma banda em ascensão e famosa, mas muito endividada. O Who tocava muito e vendia bem, mas não o suficiente para se manter sustentável, sustentar confortavelmente integrantes e empresários e ainda substituir semanalmente os instrumentos musicais destruídos nos palcos em performances exigidas pelo público.

Em um dos vários livros sobre a banda escritos pelo jornalista e escritor inglês Chris Charlesworth, Kit Lambert temeu pelo fim da banda no começo de 1969.

"O projeto era maluco e arriscado. Não conseguíamos ver viabilidade financeira, ou seja, achávamos que venderia pouco por ser hermético, quase erudito, pouco acessível. Aquele seria o quinto álbum de uma banda com prestígio e que crescia rápido, mas que estava endividada e sem crédito. Era o momento da virada", disse o empresário.

Contra todos os prognósticos, "Tommy" deu certo, e muito. Tornou-se a obra mais importante do Who e alçou Townshend ao topo dos compositores de música pop, ao lado de gente como John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan e Brian Wilson, entre outros.

O álbum duplo foi lançado em maio de 1969 e surpreendeu pelo arrojo da ideia e pela qualidade das composições e produção. Mesmo duplo e mais caro do que o normal, vendeu muito bem e impulsionou as contratações de shows.

O cachê da banda aumentou e aliviou o sufoco financeiro da banda. Não bastasse isso, acabou sendo o ponto alto da apresentação do Who no festival de Woodstock, em agosto daquele ano.

"Tommy" salvou a carreira do Who, a reputação de Townshend e abriu uma janela gigante de oportunidades artísticas e estilísticas dentro do rock e da música pop.

Foi a primeira ópera-rock da história? Para a maioria dos historiadores, sim, mas isso é irrelevante. Há gente que contesta, afirmando que "P.F. Sorrow", dos Pretty Things, e "Arthur", dos Kinks, também são óperas-rock e foram lançadas anteriormente. Admitindo-se que seja verdade, ainda assim a proeminência de "Tommy" se justifica: é uma obra melhor dos que as citadas e vendeu muito, mas muito mais.

Por mais que o roteiro seja considerado uma história psicodélica com ares pueris e pseudo-intelectual, "Tommy" marcou época porque mostrou que o rock poderia ter aspirações artísticas mais ambiciosas. Poderia incorporar elementos eruditos e ter pretensões literárias (músicas de Bob Dylan já indicavam essa tendência).

Townshend já mostrava que poderia avançar em termos de composição quando gravou duas minióperas anteriormente – "A Quick One While He's Away" (álbum "A Quick One", de 1966) e "Rael" ("The Who Sell Out", de 1967) e gostou dos resultados. Era o caminho que tinha encontrado para se diferenciar em uma época que se mostrou a mais competitiva na história da música pop.

O roteiro que se mostrou simples e que foi se complicando ao longo da história casou perfeitamente com a poderosa música criada por Townshend, que adquiria contornos sinfônicos nas instrumentais "Sparks" e "Overture", épicos na longa "Amazing Journey", teatrais nas belas "Tommy Can You Hear Me" e "Sally Simpson", dramáticos em "Pinball Wizard", "Acid Queen" e "Cousin Kevin" e surreais em "Smash the Mirror", para não falar dos aspectos políticos e messiânicos de "I'm Free", "We're Not Gonna Take It/See Me Feel Me".

A crítica recebeu relativamente bem o álbum duplo, embora tenha demorado um pouco para entender o conceito da obra e seu impacto em um público cada vez mais exigente.

Greg Lake (1948-2017), o eterno baixista do Emerson, Lake & Palmer e amigo de Townshend e Daltrey, conta em uma entrevista para a BBC, em 2009, o impacto do álbum entre os músicos de primeiro time na Inglaterra:

"Eu estava começando no King Crimson, que tinha uma proposta musical revolucionária, mas tinha no Pink Floyd, o Moody Blues fazendo coisas com orquestra, coisas avançadas. Era duro concorrer. E aí aparece o Who com 'Tommy'? E todos se perguntavam: 'Para onde vamos agora?' E (Robert) Fripp [guitarrista e líder do King Crimson] ficava maravilhado com esse ambiente criativo. A cada obra dessas que surgia ele dizia: 'Estamos no caminho certo'. De certa forma, 'Tommy' mostrou para muita gente qual era o caminho."

"Tommy" é a obra máxima do Who (não necessariamente a melhor) e foi a redenção da banda, catapultando-a definitivamente para o primeiro patamar do rock.

Com o fim dos Beatles, dividia frequentemente o posto de principal banda do mundo no começo dos anos 70 com Rolling Stones, Led Zeppelin e The Faces. Se não fosse pela ópera-rock, certamente o Who teria implodido naquele ano de 1969.

Contrariando as expectativas, o Who e Townshend não ficaram reféns de "Tommy". Claro, "Pinball Wizard" é obrigatória em quase todos os shows, mas o grupo lidou bem com a importância que a obra assumiu dentro da cultura pop.

Tudo bem, já foram realizadas três turnês comemorativas do álbum nos últimos 30 anos, com a execução do álbum duplo na íntegra.

"Tommy" é uma das páginas gloriosas da música pop e, por mais que soe datado, na opinião de algumas pessoas, tornou-se um importante legado do rock dos anos. 60.

É um retrato da extrema veia criativa da época, da autoindulgência e dos excessos tão característicos daquele grupo chamado de "realeza do rock britânico". Nada mais anos 60 do que esse tipo de comportamento – e desse tipo de música.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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