Topo

Um PM metaleiro descarta perseguição a roqueiros em SP. Será?

Combate Rock

17/08/2019 07h00

Marcelo Moreira

A ocorrência era relativamente simples. Duas pessoas em situação de rua brigaram na noite de domingo, 4 de agosto, pertinho da sede de uma prefeitura de uma cidade do ABC Paulista. Os dois brigões estavam machucados e alcoolizados à espera de uma ambulância.

Dois carros da Polícia Militar atenderam à ocorrência e um já estava de partida. Não houve aglomeração, já que esse tipo de ocorrência nem desperta mais a atenção dos "populares", ainda que houvesse dois pontos de ônibus cheios nas proximidades e uma igreja evangélica gigante.

Inacreditavelmente, o som que saía de uma das viaturas, de um celular, era um rock pesado. Iron Maiden em alto volume, enquanto os três PMs esperavam com cara de tédio a chegada da ambulância do Samu.

O meu interesse foi que a música que estava tocando era "Alexander, the Great", um clássico underground progressivo da banda inglesa de heavy metal. Instintivamente, comecei a cantar a música.

Um dos PMs, um cabo negro, sorriu e me perguntou se eu gostava da música. Respondi positivamente e comentei que era uma raridade que policiais gostassem de rock pesado. "Pode ser, mas a gente ouve de tudo, principalmente rap e samba", disse o simpático policial.

"Ok, mas quem é que curte metal de vocês três?", eu perguntei. "Eu gosto de coisa mais pesada, os outros dois até ouvem e não reclamam, mas preferem coisas mais leves, tipo Queen e rock nacional."

"Não é comum policiais ouvirem rock, pelo que eu saiba", tentei esticar o papo. "Cansei de tomar esculacho e enquadrada de policiais quando era mais novo."

Sem qualquer alteração, o cabo comentou casualmente: "Eu sei que muito tempo atrás havia uma certa 'prevenção' contra os roqueiros, era uma associação imediata com drogas e confusão. Só que faz muito tempo que ouço colegas bem mais velhos dizerem que trabalhar em evento de rock é moleza. Duro é conter as multidões nos pagodes da vida e nos pancadões. A gente tem de ficar muito 'ligado'."

Iron Maiden (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Sem que eu perguntasse, o cabo se animou. "Minha preferência é rock e rap, gosto de peso e de pegada. Comecei no punk, e todo mundo curtia um 'negão' no punk sem cair nos extremos. Depois fui para o hardcore e o heavy metal. Comecei pirando nos Ratos de Porão."

Foi a deixa para comentar sobre o show da banda naquele mesmo dia no Parque da Juventude Ana Brandão, em Santo André, em um festival gratuito. O tom casual ficou de lado e um sorriso surgiu. "Demos uma passada lá à tarde e consegui ouvir umas cinco ou seis músicas, de longe. Adorei. Evento tranquilo, bem organizado. até onde sei, sem ocorrências."

Os dois companheiros dele se juntaram à conversa e demonstraram satisfação a respeito do evento em Santo André. "O cara curtiu a música  que tava tocando no carro", disse o cabo. "Qual era a nome dela mesmo? Era aquela do marinheiro [ele se referia ao hino "Rime of the Ancient Mariner]?"

O moreno mais corpulento disse que a seleção do Iron Maiden no celular era obra da namorada, fanática pela banda, que ele aprendeu a amar. "Na minha igreja dizem que é música do diabo, algo que dou muita risada. Demônio é o que a gente enfrenta no dia a dia", declarou gargalhando em seguida.

Eu tinha de aproveitar a chance e emendei: vocês ficaram sabendo dos eventos cancelados e interropidos por PMs recentemente em vários locais do país? Será que isso vai se tornar praxe?"

O cabo nem se incomodou com a coisa e pediu mais informações. Quando comentei sobre a interrupção do show do Escombro em Brasília, do cancelamento do Facada Fest em Belém (PA) e da interrupção do show de BNegão em Bonito (RS), houve alguns segundos de silêncio.

"Não recebemos nenhuma orientação a respeito de coibir manifestações políticas [até então não havia sido divulgada a detenção de um torcedor do Corinthians no jogo contra o Palmeiras poer ter xingado Bolsonaro]." Os companheiros assentiram.

"O que está acontecendo é que a galera bebe e começa a brigar por causa de política. Antes era por conta do futebol, agora quem é Bolsonaro não aceita crítica. Como o Lula tá preso, os petistas baixaram a bola, mas basta qualquer alusão a Bolsonatro e a coisa ferve", disse o cabo.

Após uma pausa, o policial comentou rapidamente. "Não sei o que rolou em outros lugares, mas o que posso deduzir é que o clima não está bom e todo mundo está se precavendo. Quando um PM percebe que o clima esquenta por conta de xingamentos a Bolsonaro, pode querer intervir rapidamente antes que haja tumulto."

Mas e se o João Gordo insuflasse o público com suas críticas pesadas ao governo federal, como ele fez na sexta-feira anterior, no Sesc Belenzinho? "Depende da situação. Se o público começasse a xingar e gritar e só ficasse nisso, é o mesmo que acontece em jogo de futebol, quando parte do público xinga o adversário, a polícia, o padre e todo mundo. Não tem muito o que fazer. Se a coisa complicar e o tumulto rolar solto, a polícia tem que tomar providência, inclusive interrompendo o espetáculo, se for o caso. Mas isso só em caso de tumulto, em último caso."

Mas como justificar, então, uma ação como a que ocorreu na Arena Corinthians na mesma noite? De qualquer forma, não dá para sentir alívio diante das palavras do articulado e ponderado cabo PM (está no terceiro ano de direito em uma faculdade da zona leste).

Se por um lado podemos perceber que, ao que parecer, não existe uma orientação geral do Comando da PM ou da Secretaria de Segurança Pública a respeito das manifestações anti-Bolsonaro, por outro lado a situação é perigosa porque, neste momento, as decisões são exclusivas dos comandantes das circunstâncias.

Um tenente ou capitão pode ignorar os xingamentos, mas um major ou coronel pode resolver que é o caso de se "evitar um tumulto" afastando e detendo quem está xingando, em uma ação ilegal e inconstitucional, como ocorreu no estádio do Corinthians.

Ainda há bom senso em alguns policiais militares que fazem patrulha por aí, mas isso, infelizmente não tranquiliza todos os cidadãos que lutam pela liberdade de expressão, opinião e de imprensa.

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
Contato: contato@combaterock.com.br

Blog Combate Rock