Meio século depois, o 'sonho' de Woodstock é uma mera lembrança
Marcelo Moreira e Mauricio Gaia
Tinha tudo para dar errado. Aliás, tudo para dar muito errado. Mudança de local em cima da hora, uma cidade sem infra-estrutura para receber o público imaginado – que acabou sendo o dobro.
Chuvas torrenciais, atrasos, invasões. Mas não é assim que a história contou o que aconteceu no festival de Woodstock, ocorrido entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969.
O que a história conta foi que, embalada pelas músicas de gente como Jefferson Airplane, Jimi Hendrix, Janis Joplin, entre outros, a cultura hippie, com seus lemas, encontrou seu ápice em uma fazenda na cidade de Bethel, estado de Nova York. É o que a história conta, mas a verdade, é que ali foi o começo do fim da era hippie, como ela se desenhou ao longo dos anos 60.
Se podemos estabelecer marcos importantes da história da cultura ocidental, certamente a década de 60 concentra os mais importantes, e somente 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o evento mais importante da história da humanidade, em todos os sentidos.
O surgimento dos Beatles, a transformação da cultura pop em força primordial de mercado e de mudanças, empurrando a joventude para a contestação e o confronto; a proeminência do socialismo enquanto força intelectual dos debates ideológicos e cadêmicos; o uso da arte como meio de protesto, resgatando algo que o folk e o blues fizeram no século XX; as revoltas estudantis de maio de 1968 na Europa e no mundo, mostrando que o dompinio do neoliberalismo no Ocidente seria enfrentado com força e violência; e finalmente o festival de Woodstock, que iniciava o fim da era hippie e do "flower power", que seria devidamente enterrado com a violência no festival da Altamont, na Califórnia, em dezembro de 1969, com o festival da Ilha de Wight, na Inglaterra, em agosto de 1970, com o fim dos Beatles em 1970 e as mortes trágicas de Jimo Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones e Jim Morrison (The Doors).
Aliás, bem antes, ainda em 1969, o tal do "flower-power" havia sofrido um forte abalo, graças aos malucos comandados pelo não menos doidão Charles Mason, que, dias antes de Woodstock, haviam invadido a mansão de Roman Polanski e assassinado sua esposa, Sharon Tate, que estava grávida, e quatro amigos do casal.
Este rastro de violência não passou por Woodstock – duas pessoas morreram (uma por overdose, outra atropelada por um trator), mas acabou desaguando no Festival de Altamont, próximo a San Francisco.
Por um lado, Woodstock deu muito errado. Como ningém esperava aquele volume de gente – fala-se que foram ao local entre 250 mil e 500 mil pessoas nos três dias de shows -, houve superlotação, falta de água, falta de comida e falta de acomodações (e banheiros).
O desastre já era previsível antes do primeiro dia, em termos financeiros. Os promotores não ganharam nada e ainda tiveram de correr atrás de dinheiro para pagar os cachês. Alguns artistas não receberam, outros, só muito tempo depois. A organização cogitou não pagar ninguém, mas a cautela e prudência falaram mais alto.
Era para ser a celebração de toda uma geração, e isso acabou ocorrendo – sem violência, sem incidentes graves, sem nuvens pesadas.
Ok, nomes de peso não apareceram. Os Beatles estavam no começo da dissolução, os Rolling Stones recusaram o convite pois precisavam de tempo para ensaiar depois de quase três anos longe dos palcos. Bob Dylan? Estava de molho se recuperando de um grave acidente de motocicleta – embora ninguém soubesse disso na época.
E então coube a Santana, The Who e Jimi Hendrix tomasrem conta do pedaço e transformarem aquela zona no maior festival de todos os tempos, aquele que se tornou referência e sinônimo de festival de rock.
Depois vieram Altamont, a piora da Guerra do Vietnã, as mortes de estudantes em protest na Universidade de Ohio, o caso Watergate (escândalo político de 1972 que resultou na renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon, dois anos depois) e o soterramento de todos os sonhos de paz, prosperidade e igualdade que a geração dos "sixties" pregou.
Mick Jagger iniciou o ritual satânico em Altamont cantando "Under My Thumb" e "Sympathy for the Devil" no auge da violência e John Lennon sacramentou o fim de todo com a declaração forte em 1971 para a revista Rolling Stone: "O sonho acabou".
Mas ninguém percebeu a chegada da tempestade. Com um line-up de peso, com Jefferson Airplane, Grateful Dead, Flying Burritos Brothers e Rolling Stones, o concerto de Altamont tinha, desta vez, tudo para dar certo, mas tudo deu muito, mas muito errado.
Desde o começo os erros foram se acumulando, principalmente com a escolha dos Hell's Angels para fazer a segurança do evento.
A situação já estava fora do controle (um dos "seguranças" já havia nocauteado Marty Balin, do Airplane) quando Meredith Hunter, um jovem que estava na platéia foi esfaqueado por um Hell's Angel.
A história até hoje é controversa: a vítima estaria armada e corria em direção ao palco, onde os Rolling Stones se apresentavam. Ou não.
Alguns relatos da época diziam que a banda estava tocando "Sympathy for the Devil" quando o crime aconteceu. O filme "Gimme Shelter", de Albert e David Maysles, indica que a coisa toda aconteceu durante "Under My Thumb". No final, o segurança foi absolvido, alegando legítima defesa. De qualquer forma, a vaca flower power já havia ido para o brejo.
Ainda houve uma outra tentativa, em 1973, de resgatar o espírito Woodstock, que foi o festival de Watkins Glen, um autódromo em Nova York que já sediou corridas de Fórmula 1. Grateful Dead, The Band e Allman Brothers tocaram para 200 mil pessoas.
Apesar dos nomes, a coisa revelou-se cansativa – cada uma destas bandas tocou por 4 horas, no mínimo, cada uma, para depois se reunir em uma interminável jam session.
Nada de shows curtos e pilhados para animar uma platéia submetida a um bocado de chuva. O clima de contestação também já havia ficado para trás – a Guerra do Vietnã estava no fim, os Beatles já eram passado, Bob Dylan lerntmente voltava à cena e Hendrix, Morrison e Joplin, entre tantos outros, já haviam morrido.
Durante os anos 70, a lógica havia mudado – Woodstock havia mostrado que, embora tivesse dado prejuízo no evento, seus promotores conseguiram muito dinheiro com seus subprodutos: um filme e um álbum triplo.
Este resultado fez com que pipocassem festivais como o California Jam, cuja primeira edição foi patrocinada pelo canal de televisão ABC. Seria mais uma tentativa de reviver os bons tempos dos festivais da era hippie.
Deu certo por um lado, já que e estas iniciativas foram, mais do que Woodstock, a semente para os festivais modernos que temos hoje ao redor do mundo.
No entanto, o mundo logo se deu conta de que as novas gerações queriam música e mais alguma coisa – e nada parecido com aquele ideal do flower power.
O entretenimento ganhou novas feições e múltiplas oportunidades. E eis que 20 ou 30 anos depois, Rock in Rio e Lollapalooza se transformaram em párque de diversões, enquanto que Glastonbury e Desert Trip viraram o destino de alernativos "pelo no mucho" e cinquentões/sesentões ansiosos por atrações do classic rock para se regozijar em lembrar dos fantásticos "sixties".
Em nenhum deles não houve – e não haverá – a menor sombra do brilho da contracultura, que ficou naquela fazenda perdida de Bethel.
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