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Ouvir rock escondido no porão - uma volta aos pesados anos 70 e 80

Combate Rock

26/10/2018 11h58

Marcelo Moreira

"Parece ridículo, mas a gente demorava quase uma hora para chegar a um lugar que ficava a menos de dez minutos a pé. Fazíamos o possível para despistar quem quer que fosse – polícia de rua, polícia política, vizinhos e conhecidos que nos deduravam sempre que podiam. Era um porão num bairro afastado e, por segurança, só um por vez poderia entrar, a cada cinco minutos. Se lotasse, e você estivesse no fim da fila, dificilmente entrava. Não era grande, normalmente cabiam 30 ou mas nunca tinha menos de 100 pessoas. Tinha uns malas que faziam questão de recitar poesias próprias ruins ou algum autor engajado. a gente deixava por 15 minutos, e depois era som na caixa. Lembro que ninguém gostou de um tal Iron Maiden, mas achamos Judas Priest até que legalzinho."

O relato acima é de István Németh, 59 anos, jornalista veterano que hoje mora em Birmingham, na Inglaterra. Formado em ciências políticas na cidade de Budapeste, capital da Hungria, onde nasceu, emigrou com dois irmãos para a França em 1985, quando o regime comunista começou a flexibilizar a "ditadura do proletariado". Mesmo assim, saiu sem autorização do país. Ficou dez anos sem visitar a terra natal, o que o privou de comparecer ao funeral dos pais.

O que Németh narrou era algo fora da lei nas ditaduras comunistas do Leste Europeu. Eram reuniões clandestinas de jovens ávidos por conhecer um pouco mais de literatura ocidental, assim como ouvir rock dos bons e muito jazz, coisas até então proibidas nos anos 60, 70 e 80 por aquelas bandas.

"O legal é que aquilo que fazíamos ocorria em toda a Hungria e também nas vizinhas Tchecoslováquia e Polônia. A coisa era tão frequente que não tinha como o governo não saber o que ocorria. Só que era, tantas as reuniões ilegais que não tinham como controlar ou prender tanto moleque. Provavelmente deixaram para lá", afirmou em uma conversa com um grupo de amigos meus em um congresso de comunicação há dois anos em Curitiba.

Lembrei dessa história nesta semana, às vésperas de uma eleição presidencial em que a democracia está ameaçada. É muito parecida com alguns relatos que ouvi ao longo de mais de 30 anos de carreira e também em minha infância: reuniões secretas e seletas para discutir política, cultura e ouvir e ler obrar banidas pela ditadura militar.

O governo dos militares brasileiros estavam se lixando para o rock de Jimi Hendrix, Led Zeppelin, The Who, Rolling Stones, Beatles e outros nomes importantes, mas ficava de olho em quem gostava de Geraldo Vandré, Novos Baianos, Gilberto Gil, Caetano Veloso e até mesmo na cena black carioca onde despontavam Tony Tornado, Hyldon, Cassiano e outros artistas.

Um dos momentos mais importantes do atual show de Roger Waters, que ainda estáa em turnê pelo Brasil (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Se alguém não quisesse dor de cabeça naquela época, era melhor ouvir sozinho, em casa discos de artistas que eram visados pela ditadura, da mesma forma que, se quisesse fazer sarau para leitura de obras "suspeitas" ou "proibidas", que o fizesse em recinto privado, para poucas pessoas e de confiança.

Queremos isso de novo, 54 anos depois do surgimento da nojenta ditadura dos militares e 33 anos depois de seu fim? Queremos voltar ao tempo em que, para ouvir Ratos de Porão, Cólera, Garotos Podres e outras bandas de protesto, precisaremos nos enfurnar clandestinamente em porões malcheirosos e sujos para exercer nossa liberdade de expressão e de escutar o que quisermos?

A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) a presidente da República pode representar tudo isso. Pode representar fechamento de museus, de casa de shows, de ataques a músicos dissidentes e banimento de vários tipos de atividades artísticas.

Seus seguidores já demonstraram que estão dispostos a isso antes mesmo da vitória, agredindo adversários políticos, militantes petistas, LBGT, negros, índios e qualquer um que ouse dizer que não votou em Bolsonaro – veja bem, dizendo que não votou, sem qualquer crítica embutida.

As ameaças virtuais e físicas contra jornalistas se intensificaram de tal modo que o jornal "Folha de S. Paulo" pediu proteção policial a uma repórter e a um diretor da empresa.

A candidatura de Bolsonaro representa o endosso da ditadura militar, da tortura e da eliminação de adversários, como ele declarou no domingo passado em discurso exibido no caminhão de som na avenida Paulista.

Mais do que isso, representa o retrocesso de todas as políticas inclusivas de minorias e de estabelecimento dos direitos humanos, para não falar na ameaça direta e explícita de restringir liberdades individuais – de opinião, de expressão e de imprensa.

A vitória de Bolsonaro é uma ameaça à democracia. Não pode ganhar e tem de ser neutralizado urgentemente.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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