A era do elogio e da valorização da ignorância
Marcelo Moreira
Muita gente costuma denunciar o que chamam de lado mais obscuro da revolução digital – hackers, cracker (hackers do mal), perda de privacidade, disseminação de notícias falsas e outras coisas bem mais complicadas. Pouca gente se dá ao trabalho de combater de verdade algo que é extremamente preocupante: a disseminação da ignorância e o desprezo pelo conhecimento.
Terreno fértil para o filósofo Umberto Eco (1932-2016) chamou de "voz estridente dos idiotas ("a internet realizou um feito, deu voz a uma legião de idiotas que antes estavam escondidos", afirmou o intelectual italiano), as redes sociais potencializaram o que de pior o ser humano costuma expelir – preconceito, ódio, violação dos direitos humanos e toda uma série de lixos.
Dentro da fauna digital, os youtubers são um dos seres mais perniciosos, principalmente aqueles seguidos por milhões de pessoas em canais entulhados de lixo. Alçados a celebridades, viraram "escritores" e "atores" de filmes publicitários, sendo "patrocinados" por empresas e recebendo muito dinheiro. Ou seja, parece que isso virou uma profissão.
E, entre esses "profissionais" – geralmente desqualificados para área de comunicação e com formação precária -, apareceram os "booktubers", gente que faz "comentários" sobre livros.
Mas não são comentários quaisquer, como salientou o jornalista Paulo Roberto Pires em sua coluna semanal na revista Época.
Muitas vezes estapafúrdios e com a profundidade de um pires, os "comentários" não passam de resenhas rápidas e banais, sem qualquer análise crítica ou informações relevantes sobre a obra e o autor.
Fuçando um pouco mais, Pires descobriu que existe uma tabela de preços para esses tais de booktubers. Dependendo do "incentivo", o tempo de exposição a respeito da obra, podendo passar de um simples comentário para uma resenha rápida ou resenha com a exibição da capa do livro.
Picaretagem? Chame do que quiser. É um escândalo, embora amplamente difundido e, aparentemente, aceito como coisa normal por muita gente – gente demais, na minha opinião. Ninguém, além de Pires, jogou luz sobre esse fato escabroso.
Ele foi certeiro em seu diagnóstico sobre o perigo desse menosprezo à cultura: "Como se pôde ver claramente no episódio da tabela das 'impressões de leitura', os booktubers e seus apologistas orgulham-se de sua ignorância e defendem o amadorismo num reiterado elogio do desconhecimento de causa. Respondem a qualquer crítica no modelito consagrado pelas redes: quem diverge, diverge porque se sente pessoalmente ofendido por aquilo que critica e, ao divergir, passa recibo da importância de seu suposto inimigo, uma ameaça em potencial a seu lugar no mundo. Não se poderia mesmo esperar outra coisa de uma cultura centrada em monólogos e umbigos, na qual é inconcebível que se possa querer discutir questões que digam respeito ao coletivo, e não apenas ao sagrado direito à 'monetização"'.
Essa gente não se esforça para disfarçar a sua intenção: é a elegia e a glorificação da ignorância. Com um pouco de paciência, é possível vasculhar esse submundo das redes sociais e comprovar que a coisa é muito, mas muito pior do que podemos imaginar.
Os "defensores" dessa nova cultura vomitam argumentos risíveis, com viés de um certo "anti-intelectualismo", louvando "a liberdade e a democratização do acesso aos livros e à cultura", como se a mercantilização de comentários estapafúrdios pode ser considerado qualquer tipo de conteúdo cultural.
Em muitos comentários jogados ao vento nas redes sociais, o que se percebe é que essa gente perniciosa considera "a crítica literária e a mídia como instituições falidas, que não se comunicam com um número expressivo de pessoas, ou seja, que não influenciam ninguém — e que, portanto, não têm mais relevância", como percebe Paulo Roberto Pires.
Esse ambiente tóxico e putrefato pode ser perfeitamente estendido a quase todo o campo da cultura e do entretenimento, onde conteúdos patrocinados ou explicitamente pagos tentam ser travestidos de coisa idônea, séria e relevante.
Na área musical, com a indústria fonográfica destruída pela chamada revolução digital – que destruiu junto a mídia especializada, deixando um legado de erosão ética inacreditável -, a proliferação de youtubers que fingem produzir conteúdo segue na mesma linha da maioria dos booktubers que cobram para "divulgar" o que quer que seja. Não hesitam em esconder que despejam conteúdo pago, mesmo que seja em troca de "presentes" ou "favores".
Além do público em geral, que tem o seus direitos feridos ao ter sonegada a informação de que se trata de conteúdo pago/patrocinado, as maiores vítimas são os músicos sérios e jornalistas profissionais que tentam encontrar novos meios de divulgar conteúdo musical.
São aqueles que vivem de aulas por skype e que de vez em quando gravam vídeos com técnicas de guitarra/baixo;teclado/bateria/gaita.
Como não desconfiar de que um guitarrista famoso, ao deixar bem visível a marca de seu instrumento, não está divulgando uma aula dita "grátis", quando na verdade pode estar sendo patrocinado pela fábrica?
Músicos e professores com prestígio fazem questão de divulgar as marcas que os patrocinam – os endorsers – em seus vídeos abertos no YouTube justamente para que não haja dúvidas a respeito daquela iniciativa.
Entre os músicos e jornalistas musicais talvez seja uma situação um pouco mais complicada e delicada de se perceber quando o conteúdo pago é travestido de "dicas e aulas grátis".
No caso da maioria dos booktubers, pelo menos os que estão atuando no momento, é mais difícil de enganar justamente por conta de o conteúdo ser diferenciado – requer um estofo intelectual que é facilmente desmascarado quando se trata de um enganador.
No caso dos youtubers musicais, a linha que separa a picaretagem do conteúdo ético e responsável é muito tênue, o que ocasiona, algumas vezes, em acusações injustas de fraude jornalística ou de conteúdo.

Reprodução da capa da edição brasileira do livro "liberdade de Expressão: Dez Princípios para Um Mundo Interligado", de Timothy Garton Ash
Seja como for, a disseminação desse tipo de prática nas redes sociais contribui para aprofundar o fosso em que estamos, onde a música, em particular, definha sem ter como reagir ao desprezo com que o público do século XXI a trata.
Como ficou fácil obtê-la de graça, geralmente por meios ilegais, não há mais a menor preocupação com coisas como direitos autorais ou mesmo a simples valorização por si só da obra artística.
Os otimistas ainda acreditam que há salvação, que uma hora a revolução digital vai permitir o surgimento de novos procedimentos e práticas que valorizem os conteúdos culturais de modo geral, incluindo o jornalismo, que está na lona atualmente em várias partes do mundo.
Eu gostaria de realmente de acreditar nisso. Hoje, entretanto, o que observamos é o elogio e a disseminação da ignorância.
Se levarmos em conta que também estamos em um período político-social grave, com retrocessos em várias áreas, é assustador observar como o menosprezo à cultura é imenso, para não falar dos constantes ataques à liberdade de expressão, opinião e de imprensa, em um caldo repleto de preconceito e mesmo de ódio.
Fica difícil fugir do pessimismo generalizado, e o desalento aumenta quando vemos o horror que são os tais booktubers e também os "musictubers", digamos assim.
Não há regra que diga que roqueiros devam ser obrigatoriamente contra o sistema, de esquerda ou favor disso ou daquilo. Mas quando músico usa rede social para propagar preconceito, ódio e restrição de direitos de qualquer tipo (em especial as comportamentais), colidindo frontalmente coim os ideais libertários do rock, é sinal de que patologia é muito grave e que doença se alastrou de forma quase fatal pela sociedade.
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