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Os 45 anos de uma obra-prima do Who: 'Who's Next' ainda assombra

Combate Rock

22/08/2016 07h00

Marcelo Moreira

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Dos escombros de um projeto ambicioso, megalomaníaco e fracassado emergiu um dos cinco melhores álbuns de rock de todos os tempos. Do estresse que envolveu a composição das músicas e a criação do roteiro – que quase levou todos ao hospital – às apresentações demolidoras e furiosas que vieram em seguida.

The Who saiu das gravações de "Who's Next" uma banda bem diferente: mais confiante, mais leve, tocando mais pesado e prometendo fazer shows melhores que os do Led Zeppelin, Rolling Stones e The Faces, as três que brigavam pelo topo das paradas naquele ano de 1971.

A banda realmente saiu mais leve, mas todo o processo de criação das nove músicas da obra-prima foi tão tenso, intenso e pesado que a banda, pela enésima vez, quase acabou. "Who's Next" está completando 45 anos de seu lançamento e continua atual, além de estabelecer novos padrões de gravação e de interpretação. E o grande mote – "Won't Get Fooled Again" (não seremos enganados novamente) é mais atual do que nunca.

A história costuma registrar que o ponto da virada do Who foi o lançamento de "Tommy", a ópera-rock mais aclamada da história, em 1969. Até então, era o ápice de uma carreira meteórica de quatro anos, sempre em ascensão. O quarteto definitivamente atingia o estrelado e começava a ver dinheiro entrando em suas contas – parte foi destinada as dívidas enormes com destruição de instrumentos e equipamentos no palco.

O problema, no entanto, só foi percebido em 1970, quando a turnê norte-americana acabou. E agora, o que fazer? Como superar em qualidade e em sucesso a surpreendente ópera-rock?

A resposta do Who foi "Who's Next", uma fantástica coleção de músicas pesadas, sofisticadas, sutis e delicadas, tudo ao mesmo tempo. São oito composições do guitarrista Pete Townshend e uma do baixista John Entwistle.

Com a ajuda do produtor Glyn Johns, que trabalhou com Beatles, Jimi Hendirx e muitos outros, o quarteto inglês estabeleceu novos patamares e critérios dentro do estúdio, com a primeira utilização de forma séria e competente de sintetizadores e a criação de arranjos inusitados com violinos, teclados instrumentos de sopro.

Para alguns especialistas, "Tommy" fez a banda explodir mundialmente, mas foi a pressão para superar a ópera-rock que foi o ponto de transformação definitiva do Who – de banda emergente que estourou com um grande álbum para um grupo gigante em termos de qualidade criativa, autor de clássicos definitivos.

Fracasso, brigas e redenção

Obsessivo, perfeccionista e inseguro, o guitarrista Pete Townshend ainda saboreava o sucesso de "Tommy" quando começou a perder o sono ao final de 1970. Cultuado e reverenciado como um dos grandes nomes da música pop, ainda via os concorrentes à frente dele em termos criativos, ainda que os Beatles não existissem mais e Jimi Hendrix estivesse morto.

Para ele, Bob Dylan ainda estava na vanguarda, os Rolling Stones se superavam a cada álbum – já eram a maior banda de rock do mundo -, o Led Zeppelin estava atropelando todos e praticamente criando o heavy metal e até os Faces mostravam consistência e popularidade. Townshend estava incomodado com o mundo pós-"Tommy" e não sabia para ir criativamente.

Demorou até que começasse a formular o novo projeto, mas apoiado em uma "muleta": uma nova ópera-rock, só que mais ambiciosa, com um roteiro mais complexo e sofisticado do que o de "Tommy" (a saga de um garoto traumatizado, que ficou cego, surdo e mudo, mas que recupera os sentidos e se torna um líder espiritual).

O projeto recebeu o nome de "Lifehouse". O roteiro tinha algum tipo de inspiração no livro "1984", de George Orwell: uma sociedade distópica, governada por uma brutal ditadura, onde as manifestações culturais eram reprimidas. E então eis que surge um contexto revolucionário, por meio da música, tendo uma banda – o Who – como veículo para disseminar a revolução.

The Who arrebentando no palco no início dos anos 70 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

The Who arrebentando no palco no início dos anos 70 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Em meio a vários bloqueios criativos, Townshend enfrentou problemas mais práticos: musicalmente, ele não encontrou as saídas necessárias para os arranjos orquestrais e grandiosos que tinha em mente. Em termos líricos, não achou um desfecho convincente para a história que tinha criado.

O resultado: discussões intermináveis com os outros membros da banda, que não gostaram do conceito, e com o empresário Kit Lambert, que percebeu desde o começo que o guitarrista e compositor estava entrando em um beco sem saída.

Pressionado, Townshend teve um colapso nervoso e abandonou os trabalhos de composição e gravação no final do ano. Quando retornou às gravações, encontrou um ambiente diferente: o material era muito bom, mesmo fora do contexto original, e todo mundo, da banda aos empresários e produtores, incentivaram o guitarrista a lapidar as melhores músicas.

Com ânimo renovado, o trabalho fluiu e foi concluído rapidamente, com uma grande contribuição nas pesquisas sonoras por parte de Glyn Johns. Os músicos se reuniram em estúdio para retrabalhar algumas composições do instrumentista e arranjar algumas novas, gravando em Londres e no estúdio móvel dos Rolling Stones.

Avanço e inovação

"Who's Next" é maravilhoso porque representou um avanço significativo em termos de qualidade musical e de letras. Foi experimental como nunca até então na busca por novos timbres e na utilização de elementos diferentes, como violino, metais e elementos eletrônicos, como os sintetizadores.

"Baba O'Riley" abre o trabalho com uma contundência poucas vezes vista. É progressiva, mas é muito pesada também, com riffs poderosos e um baixo gordo e marcante. Também realça as influências da cultura indiana e do hinduísmo de Townshend, explicitadas pelo sintetizador marcante. O final, com o violino frenético de David Arbus, impressionou até mesmo os mais céticos.

"Bargain" tem um fio condutor baseado em teclados, e dá uma quebrada no ritmo intenso da faixa anterior, ainda que seja um blues rock vigoroso, com seu clima melancólico e desalentador.

"Love Ain't For Keeping" é a balada quase country  simples, sutil e delicada, com seu violão caprichado como base para uma guitarra tortuosa, mas sublime, meio que preparando para o ataque sonoro e festivo de "My Wife", a única música de John Entwistle no álbum.

É uma faixa que destoa do contexto, por não ter ligação com "Lifehouse" – é uma homenagem do baixista à esposa, mas que soa de forma meio irônica, a julgar pelo peso das guitarras, pela contundência dos arranjos de metais e pela guitarra rasgada e forte.

"Song Is Over" deveria ser um dos pontos altos de "Lifehouse", com o belo dueto do vocalista Roger Daltrey e Pete Townshend, que canta as partes lentas e melancólicas, enquanto que Daltrey injeta adrenalina, epserança e otimismo com um vocal forte e poderoso, entremeado por um dos solos mais inspirados do guitarrista.

"Gettin' in Tune" é rockão com uma pegada soul conduzida por uma guitarra frenética e uma base fantástica de piano executado pelo ótimo Nicky Hopkins, assíduo colaborador dos Rolling Stones. Apesar da carga dramática da letra, também tem um astral positivo e integraria o projeto "Lifehouse".

"Going Mobile" é uma espécie de "interlúdio", um country rock alegre com guitarras com efeitos e sintetizador servindo como base , quanto o baixo de Entwistle varia de "guitarra base" a instrumento solo, em linhas inventivas e cativantes. É a única cantada inteiramente por Townshend.

Na sequência, um momento sublime: "Behind Blue Eyes", a balada pesada que deveria estar inserida no clímax de "Lifehouse". Provavelmente está em qualquer lista de melhores baladas da história da música pop. É uma perfeita mescla de delicadeza, sentimentalismo, desilusão e revolta. Daltrey mostra todas as suas qualidades ao sair da singela balada para o peso que a música adquire na segunda metade, com os riffs pesados de Townshend e de Entwistle.

Apoteose e grandiosidade

O final é apoteótico, grandioso, que transborda revolta e fúria, mas que também é recheado de amargura e frustração. Townshend rechaça as interpretações de que "Won't Get Fooled Again" seria o ponto final definitivo dos bom astral dos anos 60, após o final dos Beatles, a trágica morte em Altamont, no concerto dos Rolling Stones, e as mortes de Hendrix, Jim Morrison (The Doors), Brian Jones (Rolling Stones) e Janis Joplin.

Entretanto, não há como não relacionar a canção, que talvez seja o primeiro metal progressivo da história, ao fim de todos os sonhos  do "flower power". O recado pode ser interpretado como um despertar com desilusão – ou seja, que ninguém seria enganado novamente, em alusão ao atropelamento de todos os ideais de paz e amor pela realidade.

"Won't Get Fooled Again" é a música mais pesada que o Who já compôs e gravou. Prevista para ser o encerramento de "Lifehouse", resume todo o estado de frustração e desilusão, aqui transformados em agressividade nos ferozes ataques de guitarra de Townshend e nas precisas e elaboradas linha de baixo de Entwistle. São quase nove minutos de uma exuberante exibição de técnica, feeling e inteligência.

A música é uma obra-prima, mas ainda assim, o baterista Keith Moon conseguiu ser destaque, em um trabalho estupendo realizado na faixa. Sua bateria soa múltipla, gigante e expansiva, com viradas impossíveis e ritmos alucinantes. Sua performance já tinha sido admirável em "Baba O'Riley", "Bargain" e "Song is Over", mas deixou para o final a sua melhor performance.

O fracasso de "Lifehouse" gerou uma das maiores obras-primas do rock, ainda que alguns críticos o considerem como uma colcha de retalhos, o que é uma bobagem. Se ninguém soubesse da existência de "Lifehouse" o álbum teria a mesma grandiosidade e eloquência, justamente pela alta qualidade das músicas e pelas inovações que contém. Foi o auge criativo do Who, que ainda impressionaria o mundo com a ópera-rock "Quadrophenia", de 1973.

 

 

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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