A incrível história de como conheci David Bowie
Carlos Eduardo Oliveira (*) – especial para o Combate Rock
É, a ressaca ainda está brava. Tentei assistir ao clipe da belíssima "Nite Flights", faixa do pouco falado (mas ótimo) Black Tie White Noise, e foi impossível deter a lágrima correndo no canto do olho. Mas quer saber? Em meio à tristeza, até que me sinto privilegiado. Dei a tremenda sorte de conhecer meu maior ídolo bem de perto, e de uma maneira pra lá de inusitada. Uma história quase tão inacreditável quanto verdadeira.
Em 1990, ainda na imprensa nanica, mas já credenciado (pela extinta Gazeta de Pinheiros) para os shows da Sound + Vision Tour, não tive o menor pudor de xeretar no Hilton Hotel, em São Paulo, onde sabia que o mestre dos mestres se hospedaria. Tietagem explícita.
Bem, em termos. A meu favor, a tentativa (verdadeira) de uma entrevista com o guitarrista de Bowie naquela turnê, Adrian Belew, ex-King Crimson, um frila para a revista "Rock Brigade". Apesar de ser um tempo bem mais relaxado na relação jornalistas versus artistas (quase todo mundo dava entrevista coletiva quando vinha ao país – a de Bowie havia sido no Rio), eu sabia que a coisa não rolaria assim, no "susto". A gravadora havia desconversado a respeito da entrevista, então a alternativa seria tentar ao menos deixar uma cópia da revista com algum assessor "gringo". O tempo jogava a meu favor, já que três shows estavam escalados para a Paulicéia.
Era um sábado á tarde modorrento, e não havia um fã sequer ao redor. Carregando uma sacola de plástico daquelas que as gravadoras forneciam, com sei lá quantas capas de LPs dentro, entrei no lobby. Ninguém. Tudo parado. Como conhecia o hotel, peguei o elevador e fui para o andar da piscina.
Lá, me deparei com alguns músicos e pessoas da produção. Alguns jogavam bilhar. Adrian Belew não estava. Fiquei um tempo por lá como quem não quer nada, tentando não ser notado. De repente, escuto o "plim" da chegada do elevador ao andar. A porta se abre – era Bowie. Sozinho. Com uns papéis na mão. Ele riu e brincou com quem estava por lá. No minuto seguinte, sentou numa cadeira e começou a ler os tais papéis.
Tentei controlar a tremedeira que ameaçava me paralisar. Mas não vacilei: respirei fundo e pedi licença. "Hi, mister Bowie, posso te pedir um autógrafo"? "Claro", ele devolveu. Mas quando viu a pilha de capas de discos, disse: "Só um, porque estou trabalhando". Mais do que rápido, saquei, claro, o Aladdin Sane. Ele perguntou meu nome e assinou. "Vai ao show hoje"? Respondi que sim, agradeci, dei meia volta e chamei o elevador, quase não acreditando no que tinha acontecido.
Acabei não deixando a tal cópia da revista. À noite, já com o nome da publicist a quem deveria endereçar, saí direto após o antológico primeiro show da turnê no Parque Antártica e deixei um exemplar na recepção do hotel, aos cuidados dela. Comigo estava Sônia, "peguete" da época e igualmente fã. Antes de dar a partida no Fiat Uno parado em frente ao Hilton, o clima "esquentou" e ficamos uns minutos por lá mesmo, aos beijinhos. Devia ser umas duas da manhã. De repente, a Sônia solta um berro: "Meu Deus, olha quem está na frente do hotel".
Olhei e não acreditei: Bowie. Apenas ele e o então segurança pessoal, um australiano todo tatuado, que vim a conhecer depois. Como se nos fosse dada uma senha, saltamos ao mesmo tempo do carro e atravessamos a rua. A surpresa inacreditável veio quando ele me reconheceu da tarde anterior, e tascou um simpático "hi!".
De jeans e camiseta, a primeira constatação foi de que aquele cara que se agigantava no palco, de pé, ali parado, era bem mais baixo que meus 1,67 metros. Depois, a de que ele estava meio "alegrinho" – talvez por conta de alguns drinques.
Não lembro tudo que conversamos, mas um replay com os melhores momentos daqueles memoráveis minutos inclui:
– Gostaram do show?
– Sim, muito.
– As pessoas no Brasil conhecem meu trabalho?
– A maioria, só do Let's Dance em diante.
– É, só do Let's Dance em diante, sei disso.
– Entrevistei Lindsay Kemp no Brasil anos atrás e ele disse que se orgulha dos anos em que trabalharam juntos.
– Eu também. Devo a ele muito do que sei de palco.
Aí veio o impensável. De repente, do nada, ele me pergunta: "Com que música você acha que eu deveria abrir o show"?
Diante de minha fração de titubeio, Bowie pega meu braço, chacoalha-o, brincando, e diz: "C'mon, tell me, I want to know".
– "Golden Years", mandei, no susto. E completei: "Mas minha música favorita é 'Win'" (obs: de Young Americans).
– "Win" deve entrar em uma das próximas turnês…
Na minha concepção, ele só deu "trela" porque viu trata-se de alguém que de fato conhecia seu trabalho. Mas ainda havia mais. Bowie manda um "see you later" e se vai, rua abaixo, com o segurança. Eu e a Sônia os seguimos. De longe, para não perturbar.
No quarteirão abaixo do Hilton, onde hoje, salvo engano, fica um hotel, funcionava uma boate bem mequetrefe. Eles entram. Nós também. O lugar estava quase vazio. Detalhe: ninguém ali tinha a menor ideia de quem era ele. Pegamos uma mesa bem próxima. Vimos quando engatou um papo – ou melhor, tentou – com uma moça, que veio sentar com ele, "gostosa" (perdão pelo termo), mas meio feinha. "Te pago o que você quiser", escutei-o falar.
Uns poucos drinques depois, ela levanta e diz para uma colega: "Vou sair com o gringo". O segurança australiano paga a conta, os dois saem e ficam alguns instantes na porta da boate, esperando-a pegar sua bolsa.
De novo, me encho de coragem. "Se vocês estão procurando outro lugar para ir, há boas opções em São Paulo". "Amanhã, amanhã", Bowie responde, enquanto – pasmem – brinca de tentar abrir a porta de um fusca ali parado – com o isqueiro!
Um carinha passando por ali para e fica branco como cera. "Caralho! David Bowie!". Conversamos rapidamente, conto o que está rolando. Ele diz estar vindo do Espaço Retrô, casa cult que "bombava" na época. "Fala pra ele ir pra lá". Falo com o australiano, que anota o nome da casa à caneta na palma da mão. "Tomorrow", diz.
A moça chega, Bowie passa o braço em seus ombros, e sobe em direção ao Hilton. Que eu saiba, não houve Espaço Retrô no dia seguinte. Na segunda-feira, a gravadora soltaria um comunicado oficial dizendo que "o cantor está muito chateado com a insinuação de que teria visitado uma casa de reputação duvidosa", ou algo do tipo.
Não consegui a entrevista com Adrian Belew. Mas assisti aos três shows paulistanos da turnê Sound + Vision, inclusive o do extinto Olympia, de ingressos a preços astronômicos, no qual só consegui entrar graças à generosidade (ou piedade?) do Seu Rossi, um dos sócios, já que o credenciamento de imprensa não valia para a casa.
Anos mais tarde, quando do lançamento do maravilhoso Earthling, a passagem acima talvez tenha sido o passaporte para a entrevista que rendeu capa na revista Dynamite. Originalmente, a entrevista, das poucas para a América do Sul, teria de ser pessoal. E em Nova York. Mas insisti na gravadora que havia "conhecido" Bowie anos antes, e sei lá como, a phoner rolou. No horário marcado, atendo o telefone (detalhe: era o número da minha casa). "Hi Carlos, it's David Bowie". No início do bate-bola de uns quarenta minutos (tive de virar a fita da gravação), ele comenta: "Me lembraram que nos conhecemos no Brasil, anos atrás". Um lorde.
Vale o clichê: histórias desse naipe não têm preço. Ainda mais neste momento. #bowie4ever.
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