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Paul McCartney mais humano e falível surge em novo livro

Combate Rock

30/06/2014 06h45

Marcelo Moreira

Paul McCartney afundado na depressão, tendo de lavar a louça do café da manhã e carpir a grana alta do quintal, bem como consertar as telhas de um celeiro abandonado. Pouca gente tem a disposição de imaginar o seu ídolo como um ser mundano, que precisa trocar fraldas, andar em carros pequenos, dormir em hotéis de terceira categoria tentando reerguer a carreira. Por isso a arriscada obra do jornalista escocês Tom Doyle quebrou um tabu na literatura roqueira atual: em vez de apenas narrar ou analisar os aspectos musicais, tenta traçar um perfil mais "normal" do biografado, sem deixar de ressaltar a genialidade e a qualidade da obra composta.

"Man on the Run: Paul McCartney nos anos 70" ganha uma boa versão em português pela editora Leya e surpreende com um texto leve e ágil, sem muitas firulas. Com horas de entrevista com o próprio músico e exaustiva pesquisa, bem como declarações de ex-integrantes da banda Wings, Tom Doyle mostra um ex-beatle fragilizado e inseguro ao final dos Beatles, no torturante processo de separação entre o final de 1969 e abril de 1970, o mês em que a separação foi anunciada.

McCartney surge nas páginas como um protótipo de fazendeiro na Escócia, exilado do mundo para tentar superar fim da maior de todas as bandas. É comovente a narrativa de como paul atravessou um preocupante período de depressão em sua fazenda, especialmente a sua dificuldade de sair da cama após fumar toneladas de maconha. O músico alternava trabalhos domésticos de reparo de cercas e celeiros com a troca de fraldas da recém-nascida filha Mary, além de tentar ser um pai razoável para a enteada Heather, então com sete anos de idade, em 1970.

9781846972393

A escolha do período enfocado foi muito feliz pelo autor. Longe de ser uma biografia, na verdade é uma radiografia detalhada de uma fase complicada da carreira de McCartney logo aós  fim dos Beatles. Todo mundo acha que tudo foi fantástico para ele nos anos 70 – afinal, ser ex-beatle era praticamente um passaporte para o sucesso imediato em qualquer coisa que se metesse, certo?

A realidade foi bem diferente. Com as disputas judiciais em torno do espólio dos Beatles e da gravadora Apple, o dinheiro da banda ficou bloqueado por anos enquanto a questão jurídica era discutida. Paul era um milionário virtual, mas que tinha dificuldade para operar no dia a dia, com problemas até mesmo para usar cartão de crédito em restaurantes.

No lado artístico, a retomada foi mais difícil, com a falta de inspiração e de sucesso comercial em seus primeiros dois álbuns, de 1970 e 1971. Os bastidores da criação da banda Wings e as tentativas frustradas de ser apenas mais um integrante em uma banda são bem documentados, e ilustrados com entrevistas reveladoras com os guitarristas Denny Laine e Henry McCullough.

Os dois músicos sintetizaram de forma franca as dificuldades de se trabalhar com um personagem maior do que tudo, passando do deslumbramento e orgulho de trabalhar com um ex-beatle até a frustração de lidar com os constantes momentos de indecisão de Paul em termos artísticos, bem como o desgaste natural das discussões financeiras – surpreendentemente, os músicos dos Wings reclamaram bastante da remuneração baixa ao longo dos anos 70.

Capa e contracapa de 'McCartney', primeiro álbum solo lançado ainda em 1970, imediatamente após o anúncio do fim dos Beatles; Paul aparece na contracapa com a filha Mary, recém-nascida

Capa e contracapa de 'McCartney', primeiro álbum solo lançado ainda em 1970, imediatamente após o anúncio do fim dos Beatles; Paul aparece na contracapa com a filha Mary, recém-nascida

De forma irônica, mas firme, McCartney respondeu às reclamações de Laine na entrevista a Doyle dada em 2006: "Fomos muito próximos e Denny foi muito importante para a manutenção dos Wings, ele ajudou muito como uma espécie de braço-direito. Entretanto, o fim dos Wings não foi bacana e houve problemas, não gostei de algumas atitudes dele. Quanto ao dinheiro, tenho como provar, segundo a contabilidade da minha empresa, que ele recebeu mais de 1 milhão de libras ao longo dos oito anos em que estivemos juntos. Não me parece uma má remuneração, ainda mais nos anos 70″."

O texto mantém um bom equilíbrio entre as informações sobre a carreira e o desempenho musical de Paul naquela década e a vida cotidiana da família McCartney – a mulher Linda, a enteada Heather, as filhas Mary e Stella e o filho James. E, ao contrário do que se imagina, o casal McCartney chafurdou bastante nas drogas nos anos 70, e não só na venerada maconha.

Doyle narra com detalhes os problemas do casal com a polícia britânica, incluindo uma batida na fazenda escocesa, até chegar ao fatídico giro pelo Japão em 1980, quando Paul foi preso já no aeroporto de Tóquio com maconha, permanecendo dez dias detido e sendo expulso (mas não deportado) logo em seguida, culminando com o cancelamento da turnê e o fim dos Wings.

Um dos momentos mais interessantes é a descrição do relacionamento com os outros beatles, em especial com John Lennon. Depois de alguns anos sem se falarem, aos poucos os quatro reataram algum tipo de convívio – Paul conversou por horas com Ringo Starr no casamento de Mick Jagger no sul da França, em 1971.

Os dois e mais George Harrison acabaram se juntando em uma jam improvisada, completamente bêbados, na festa de casamento de Eric Clapton com Patty Boyd, ex-mulher de George, em 1980, tendo a companhia do noivo, mais bêbado ainda.

Também há detalhes das primeiras visitas de Paul a John em Nova York em 1973 e 1974, após dois anos de troca de farpas pelos jornais e em letras de músicas – e há a curiosa jam session em Los Angeles em que os dois e mais uma série de músicos, entre eles Stevie Wonder e Harry Nilson, tentaram fazer em 1974, com todo mundo bêbado e drogado.

O relacionamento entre Lennon e McCartney continuou com altos e baixos, descritos minuciosamente, com a revelação surpreendente de um hábito esquisito e chato de Paul: o de aparecer na casa de amigos de surpresa, sem avisar. Ele adorava aparecer em Nova York, do nada, e surgir na porta do amigo Lennon, até que um dia um enfurecido John se recusou a atendê-lo, já no final dos anos 70. Também há bons detalhes de como Paul se ofereceu para reaproximar John e Yoko Ono em 1975, depois de ficarem um ano separados.

O livro de Tom Doyle é uma grata surpresa jornalística dentro do mundo do rock em 2014, não só pelo apuro técnico, mas pelo próprio conceito de fugir de uma biografia convencional e se concentrar mais na figura humana de um ícone pop, ainda que este seja gigantesco, como é Paul McCartney.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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