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'A Estrada da Cura', de Neil Peart, comove, mas também decepciona

Combate Rock

09/05/2014 07h00

Marcelo Moreira

estrada

Uma das obras literárias mais aguardadas em 2014 era o caudaloso relato de um homem que perde a filha em um acidente de carro e a mulher para o câncer em um espaço de menos de um ano. "Ghost Rider – A Estrada da Cura" (Ed. Belas Artes), de Neil Peart, ganha tradução brasileira 12 anos depois de lançado no resto do mundo, e havia muita expectativa para quem não tinha lido o original em inglês.

Fãs de rock e da banda canadense Rush não se cansam de elogiar a obra de um ser humano que se tinha tudo para submergir na depressão e cair no abismo, mas que deu a volta por cima com a ajuda de uma motocicleta (e de uma conta bancária farta) e de um espírito aventureiro que marcou a personalidade do baterista Peart, considerado um dos melhores da história do rock.

O livro é realmente interessante, e mostra uma prosa bem elaborada e elegante do baterista que escreve todas as letras do Rush desde 1975. Entretanto, a obra está longe da maravilha de que falam os fãs e empedernidos seres mais sensíveis, comovidos com a história de desespero e superação.

A mensagem é valiosa, a força de vontade demonstrada na viagem pelas Américas é algo que deva ser admirado, mas paremos por aí: são 513 páginas movidas pela dor e pela fé na vida, cheias de esperança, mas também contemplam páginas e páginas de irrelevâncias e assuntos que poderiam muito bem ser suprimidos. Não dá para afirmar que houve encheção de linguiça, mas certamente a obra, dividida em dois livros e 18 capítulos, exagera no volume e nas trivialidades. É preciso mais do que fôlego e paciência para chegar ao fim: é preciso ter fé.

Mundialmente aclamado como um dos bateristas mais técnicos e inventivos do rock, Neil Peart construiu em torno de si e do Rush uma aura de perfeição e erudição. Leitor compulsivo e escritor bissexto, assumiu com prazer a missão de escrever as letras de músicas do trio canadense e acabou se tornando um diferencial ao misturar com competência temas filosóficos, existenciais e, muitas vezes, puramente literários, o que algumas vezes lhe rendeu a "acusação" de pretensioso e exibicionista.

Seja como for, as letras de Peart, aliadas à genialidade nas baquetas, ajudaram a impulsionar a carreira do Rush, que virou megabanda nos anos 80. E tudo ganhou ares cult quando se soube que o poliglota Peart, além de erudito, em nada lembrava o astro de rock: avesso a entrevistas, recluso e apegado à família, era um apaixonado por gastronomia, ornitologia (estudo dos pássaros, a grosso modo) e um quase ecologista. Entretanto, mas do que tudo, adorava aventuras e motocicletas.

A vida serena e tranquila de músico rico e bem-sucedido, que se refugiava à beira de um lago no interior do Canadá, desmoronou em meados de 1997, quando a filha de 19 anos, Selena, se despediu de manhã dos pais para começar a faculdade em Toronto, uma das maiores cidades do país. À noite, Neil e mulher Jackie, intrigados com o fato de a filha não ligar após dirigir por uma distância que poderia ser percorrida em duas horas, recebem a notícia do acidente que matou a filha.

E é assim que o grande baterista do Rush começa o livro sem meias palavras, introduzindo o infortúnio que o levou a uma espiral de desespero, lágrimas, depressão e completo desnorteamento – tanto que, no funeral da filha, comunica aos amigos Alex Lifeson (guitarra) e Geddy Lee (baixo e vocal) que estava se aposentando aos 45 anos de idade.

Neil Peart chega a uma praia do Oceano Pacífico, no México (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Neil Peart chega a uma praia do Oceano Pacífico, no México (FOTO: DIVULGAÇÃO)

As tentativas de conviver com a dor da perda e luto subsequente só pioraram. Ele e a esposa passaram temporadas em Londres, Barbados (ilha caribenha) e Toronto, sempre rodeados de amigos e parentes, mas nada foi capaz de evitar o aprofundamento da tristeza. E a depressão de Jackie, segundo Peart nos conta com delicadeza, com certo distanciamento, evoluiu para um câncer, que a matou menos de um ano após a morte da filha. "Mais do que qualquer outra coisa, o diagnóstico da doença foi recebido por ela como um alívio, como se ela buscasse uma justificativa para encerrar o sofrimento", escreve de forma sucinta e direta o baterista.

Enquanto narra tudo isso nas primeiras 30 páginas, Peart introduz o leitor com habilidade no mundo dos aventureiros da América. Experiente viajante de motocicleta, pela primeira vez encararia a estrada sozinho, sem a parceria do amigo Brutus, que mais tarde seria preso por envolvimento com transporte de maconha.

No chamado primeiro livro, narra histórias saborosas de suas passagens pelo norte do Canadá, Alasca, extremo-oeste canadense e os Estados norte-americanos de Idaho, Montana, Utah, Colorado, Califórnia, Arizona, Novo México, Nevada e várias províncias mexicanas, até chegar a Belize, pequena república espremida entre o México e a Guatemala. Essa primeira parte da viagem consumiu quase 40 mil quilômetros. Com intervalos, depois ele voltaria a cruzar Canadá e Estados Unidos por mais duas vezes.

As histórias legais, entretanto, começam a ser entrecortadas com citações pouco atraentes sobre pratos culinários típicos, descrições longas sobre as boa e as más acomodações da estrada e as repetitivas informações sobre sua notória timidez, que o incapacita para contatos mais duradouros com as pessoas à sua volta – exceto quando se trata do irmão Danny e dos cunhados, além de uma comunidade de amigos canadenses que moram em Los Angeles.

O segundo livro começa como termina o primeiro, em uma forma de narrativa em primeira pessoa e em forma de cartas ao amigo Brutus, preso em uma penitenciária do Estado de Nova York. A partir de então Peart conta a história por meio de cartas enviadas ao amigo, e aqui ele abusa da irrelevância ao exagerar nas descrições de suas caminhadas por florestas, observações de pássaros e passeios de caiaque sem nenhum atrativo.

O excesso de informações inúteis acaba contaminando a narrativa, e as possíveis conclusões da eficácia da "estrada da cura" acabam soterradas em meio a muita conversa fiada e filosofia de boteco, que pouco tinham aparecido na primeira parte da obra.

Aqui é necessário abrir uma exceção à forma corajosa de como lidou com os cunhados durante o período de viagem pela América e da forma desajeitada como lidou com os flertes e um quase namoro com Gabrielle, uma ex-namorada de um amigo de Los Angeles que insistiu em ficar junto de Peart, apesar da evidente reticência dele. O namoro acabou não prosperando, mas teve um impacto negativo na relação com Debbie, uma das irmãs de Jackie e muito chegada ao baterista – ela não aceitou de bom grado o romance após pouco mais de um ano da morte da irmã.

DA esq. para a dir;: Neil Peart, Geddy Lee e Alex Lifeson, o Rush em foto promocional de 2008 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

DA esq. para a dir;: Neil Peart, Geddy Lee e Alex Lifeson, o Rush em foto promocional de 2008 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

"Ghost Rider – A Estrada da Cura" não oferece indicações ou conselhos de como superar tragédias como as de Neil Peart. De forma comovente, sincera e corajosa, consegue tornar palatáveis sentimentos muito íntimos e particulares.

O músico trata o leitor com um confidente bastante chegado e facilita o caminho ao se abrir de todas as maneiras, às vezes até exagerando na humanização do astro de rock que ele certamente era e continua sendo. Pena que a avalanche de informações e comentários irrelevantes da segunda parte da obra prejudiquem o andamento da narrativa.

E louve-se o fato de que Peart fugiu da armadilha de encher o relato de forte carga emocional que jogasse o livro na seara da auto-ajuda ou do sentimentalismo fácil – a prosa dele é elegante demais para sucumbir a esses artifícios. A obra cumpriu a sua função, ainda que a quantidade grande de irrelevância embaralhe e atravanque a narrativa.

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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