Sepultura 30 anos: ainda relevante, mas retrato atual do rock neste século
Marcelo Moreira
O local é discreto, numa noite chuvosa de abril em plena Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo. Nada ali, no imóvel de fachada austera e muro branco, sugere que uma hora depois a maior banda de heavy metal do Brasil fará um show exclusivíssimo, com direito a filmagem, para uma empresa internacional que fabrica óculos escuros – que é a dona do local.
Convidados VIPs e mais do que VIPs circulam à vontade, tomando cerveja boa da marca Dortmund, do interior de São Paulo, e saboreando sanduíches de Roberto Satoru, um chefe de cozinha estrelado que tem uma empresa chamada Ícone Gastro Rock. Nem as vernissages mais concorridas de artes plásticas da capital paulista costumam receber gente tão elegante, bonita e importante.
É razoável supor que mais da metade das cerca de 200 pessoas que circulavam pelo Instituto Evoke não fazia a menor ideia do que estava acontecendo – e muito provavelmente não fazia ideia do que era o Sepultura ou heavy metal, o que não invalida o evento, pelo contrário, já que apresenta música pesada de qualidade e um público diferente. Seja como for, com a qualidade e a competência de sempre, o Sepultura tocou seis músicas, sem que fosse necessário repetir um take sequer para a filmagem. Uma performance rápida, energética, orgânica e muito boa. Os integrantes tocaram, confraternizaram um pouco e foram embora.
O Instituto Evoke tem o costume de fazer eventos semelhantes, com bandas variadas, de diversos gêneros musicais, mas pela primeira vez contou com um nome internacional de peso (literalmente), que atraiu muita atenção, apesar de o evento ser discreto e fechado. O profissionalismo do Sepultura, no entanto, não evitou comentários maldosos de um grupo de rapazes bem vestidos e arrogantes, um deles com um caro paletó confeccionado em Londres (como ele mesmo fez questão de frisar. "Então quer dizer que esse tal de Sepultura foi reduzido a isso? Tocar em festa de aniversário? Barulho por barulho, prefiro um DJ, que deve ser mais barato e toca o que eu quero", disse um dos cidadãos.
Ignorando-se o comentário estapafúrdio e jocoso de um "coxinha" que deve ser adepto da abominável música eletrônica, o comentário suscita algumas reflexões a respeito da principal banda de rock que já surgiu por aqui, que completa 30 anos de existência, ainda que desfigurada, mas que continua fazendo música de ótima qualidade, mesmo longe dos grandes palcos mundiais.
O Sepultura que toca neste dia 10 de maio no Aquarius Bar, em Itaquera (zona leste de São Paulo) carrega a imensa responsabilidade de mostrar que o rock está vivo no Brasil e que o maior nome nacional tem força suficiente para voltar a fazer turnês pela Europa e pelos Estados Unidos. Mas participar de eventos corporativos como no Evoke e se submeter a comentários esdrúxulos de gente que despreza cultura é uma boa ideia?
Independentemente da motivação da banda para tocar no evento de uma fábrica de óculos – amizade com algumas pessoas ou mesmo profissionalmente, em troca de cachê (o que parece que não o caso) -, o fato em si revela, involuntariamente, um dilema que afeta os grandes nomes nacionais do gênero, refletindo diretamente nas perspectivas das bandas médias e pequenas: partir para encarar a realidade de 2014, com público bem menor do que o de dez anos antes, e tocar onde for possível, mesmo que seja necessário "expandir" o raio de ação para eventos corporativos, ou evocar o nome internacional que ainda ostenta (e sustenta) e fazer de ventos como o Evoke meras exceções? Ainda há cacife para arriscar turnês mais curtas, mas em lugares maiores e com mais público?
Andreas Kisser, o guitarrista que assumiu o leme da banda após a saída de Max Cavalera em 1996 e que fixou sozinho no comando com a saída de Iggor Cavalera, o baterista, dez anos depois, não tem ilusões quanto ao mercado atual. Ele já declarou algumas vezes que o mundo inteiro está sofrendo com o declínio da indústria musical e da indústria de entretenimento como um todo. Está difícil para todo mundo e as bandas estão tendo que trabalhar mais e mais por espaço e construir novas turnês internacionais. Se está difícil para o Sepultura, imagine para os outros…
Mas será que lá em 1990, quando o Sepultura estourava de vez no cenário internacional com criatividade e inovação musical poucas vezes vistas, poderíamos imaginar o Sepultura tocando em um evento corporativo em plena quinta-feira de abril, em um reduto mauricinho como a Vila Madalena, um terreno que bem recentemente se tornou hostil ao rock?
Eventos corporativos não são demérito para nenhum artista. Titãs ficam com a agenda lotada todo final de ano, tocando em diversas festas de confraternização de encerramento de trabalhos de empresas grandes. Foi o que restou? Talvez, mas o mercado corporativo cresceu, e outros artistas dos anos 80 engoliram o orgulho e aderiram, como Barão Vermelho, Kid Abelha e mesmo Lobão. Mas a pergunta ainda fica martelando na cabeça: mas justo o Sepultura?
A tentação de enxergar a decadência da banda é enorme. Não são poucos os apreciadores de metal, jovens e nem tão jovens, que se tornaram detratores do Sepultura, por diversos motivos. Os mais fundamentalistas não admitem a banda sem Max Cavalera. Outros não admitem a banda sem Max e Iggor Cavalera. Outros ficam esperando a cada um ano um novo "Roots" ou "Chaos A.D.", e não economizam xingamentos quando ouvem os resultados em novos álbuns.
E, por incrível que pareça, há os que desprezam a banda simplesmente por ser brasileira, fazendo pouco caso do "suposto" sucesso internacional que teria conseguido (um autêntico caso de briga com os fatos…). Ainda bem que evoluímos e ninguém mais critica o Sepultura por ter escolhido um cantor negro para substituir Max – sim, esse tipo de aberração racista ocorreu lá no início dos anos 2000, em algumas comunidades no abandonado Orkut, provocando protestos generalizados e o consequente e desejável banimento das próprias comunidades e dos autores dos comentários.
O fato é que o Sepultura tem de continuar a ser bastante respeitado pelo seu trabalho anterior e pelo atual, por mais que o mercado não seja mais tão simpático com a banda como foi nos anos 90. A banda pode eventualmente optar por aceitar convites para tocar em eventos corporativos, algo impensável para os metaleiros mais radicais ou mesmo para os fãs da banda que a conheceram nos anos 90? Que seja, é um mercado a mais, uma opção a mais para levar o som pesado da banda a outros públicos.
O Sepultura continua sendo relevante porque é um grupo corajoso, com artistas ousados e criativos, ainda que os resultados não sejam espetaculares. "Dante XXI", "A-Lex", "Kairos" e o novo álbum, "The Mediate…", mostram um quarteto em constante evolução e procurando fazer algo diferente – e conseguindo.
As letras melhoraram, assim como os conceitos dos temas abordados, e o instrumental está mais rico, com a adição de elementos diferentes no metal. É um grupo que merecidamente atingiu um patamar artístico de tal importância que lhe é permitido ousar e criar, fazendo algo diferente. No Brasil atual, ninguém algo tão diferente ou ousado como o Sepultura. E conta-se nos dedos as bandas estrangeiras que estejam no mesmo caminho – e menos ainda as que são bem-sucedidas buscando o diferente.
Mas a questão da suposta "decadência" do Sepultura aos 30 anos de idade – um equívoco grosseiro e maldoso – levanta uma questão mais profunda e complicada: compensa criar música nova, trabalhos novos?
Compensa empregar enorme esforço e dinheiro em um trabalho criativo em uma época em que a música cada vez mais se torna desvalorizada e descartável – e os gênios de outrora são vistos como excrescências surgidas no período paleolítico? Será que o caminho é se tornar uma banda de apoio de um programa de TV de qualidade questionável, como o Ultraje a Rigor, que pelo menos temporariamente abriu mão de gravar nos álbuns e de fazer turnês pelo Brasil?
Os dois últimos álbuns do Sepultura, independente de sua qualidade, respondem em parte a essa questão. Tocando no Rock in Rio, no Madison Square Garden ou no Aquarius Bar, e aceitando participar de eventos corporativos por qualquer motivo, o Sepultura demonstra que continua relevante, fazendo boa música e seguindo em frente, por mais que hoje haja menos gente ouvindo rock e menos gente ouvindo música boa no geral. Será que outros artistas bons e talentosos terão ao menos alguma das chances que o Sepultura teve ou está tendo para manter-se na ativa? Voltaremos em breve ao tema.
Sobre os Autores
Sobre o Blog
Contato: contato@combaterock.com.br
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.