Pete Townshend vira cronista de si mesmo e decepciona em autobiografia
Marcelo Moreira
Bob Dylan ganhou ainda nos anos 60 a alcunha de "poeta do rock", com justiça, devido a qualidade de suas letras. Bruce Springsteen virou a voz do trabalhador e do homem comum norte-americano, enquanto que Pete Towenshend se tornou o melhor cronista do rock. Entretanto, de todos, o líder do The Who sempre foi reconhecido como o melhor texto entre todos os roqueiros, melhor até mesmo do que o de outro bom cronista, Ray Davies (The Kinks).
Os artigos de Townshend na Rolling Stone, no jornal semanal Melody Maker e nos jornais diários Independent e Guardian sempre foram elogiados de forma quase unânime – sem falar que já publicou um festejado livro de contos, "Horse's Neck" ("Treze", título ridículo da edição em português). Por tudo isso, a autobiografia que publicou em 2012 era um dos livros mais esperados do daquele ano – e que acaba de ser lançado, finalmente, no Brasil, pela Editora Globo.
Diante da enxurrada de boas biografias e autobiografias surgidas desde 2007, a mais esperada de todas decepciona em relação ao de artistas do mesmo calibre. O livro de Townshend é uma grande crônica, com muita reflexão, divagação e considerações pouco relevantes da diante da importância da obra. Pouco se aprofunda em temas relevantes da história de sua banda, o fantástico de The Who, e deixa pouco espaço para o relacionamento entre os membros da banda – que forma a quina de outro do rock ao lado de Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin e Pink Floyd.
O texto é muito bom, mesmo na tradução brasileira, o que mostra que o guitarrista sabe mesmo escrever. Pena que escolheu um estilo que não lhe faz jus à fama de bom escritor. Como não poderia deixar de ser, optou por escrever a sua história, assim como Eric Clapton. Entretanto, Clapton o supera em termos de contundência e sinceridade – talvez porque a sua turbulenta história de vida seja um verdadeiro filme hollywoodiano na comparação com a aparentemente pacata trajetória de Townshend.
A leitura é obrigatória, pois se trata de um gigante do rock, mas o leitor não vai encontrar grandes novidades, nem informações muito diferentes do que as ótimas biografias de Richard Barnes e Chris Charlesworth trazem. Infelizmente também há pouquíssima descrição sobre o seu processo de composição ou a forma como foram gravados os álbuns – só "Tommy" e "Quadrophenia" mereceram essa distinção.
Outros que também vão além da trivialidade como Clapton, por exemplo, são Keith Richards e Tony Iommi (Black Sabbath), que tiveram a ajuda de jornalistas e escritores. O stone é franco e duro nas suas posições, e não relutou em destilar veneno e rancor contra seu principal parceiro, Mick Jagger. Iommi, por sua vez, seco e direto, mas com certo bom humor ao analisar a trajetória mais do que acidentada de sua banda, e não teve receio de expor os verdadeiros motivos de brigas e demissões de músicos, nem de revelar características de amigos e companheiros que poderiam perfeitamente ser omitidas.
E aí começa a decepção com o livro do guitarrista do Who. Vítima de abuso sexual quando tinha entre 5 e 6 anos de idade, quando morou com a sua instável avó materna, que recebia vários homens em casa o dia inteiro, Townshend demora demais para tocar no assunto, e sempre de forma sorrateira, dissimulada, sem muita clareza.
Ao transformar sua vida em uma grande crônica, várias vezes optando por um estilo leve de escrita jornalística, Townshend perde a objetividade e deixa de analisar passagens importantes da carreira do Who, passagens que definiram a sua vida e a sua carreira. Trata como se fosse corriqueiro o fato de ter conhecido o brigão Roger Daltrey, que se tornou o vocalista do Who e seu melhor amigo desde sempre, apesar das brigas. Do mesmo modo, apenas menciona o encontro inicial com John Entwistle, o grande baixista do Who.
Quando decide aceitar finalmente tocar guitarra na banda The Detours, liderada por Daltrey, em 1961, esquece simplesmente de mencionar que Entwistle já era o baixista da banda – qualquer biografia bem feita do Who vai esclarecer que Townshend teve papel importante na chegada do baixista. Da mesma forma displicente, o autor passa quase batido quando os produtores Peter Meaden e Shel Talmy forçam o grupo a mudar de nome – The Who virou The High Numbers por pouco tempo – para gravar o primeiro single, em 1964, com as faixas "Zoot Suit" e "I'm the Face", ambas compostas/plagiadas por Meaden. Pior ainda, dá um salto e ignora quando, como e onde The Who voltou a se chamar The Who.
Outra omissão imperdoável: a expulsão de Daltrey da banda em 1965. Townshend a trata de forma corriqueira, como se fosse apenas mais um fato comum na carreira da banda. O Who esteve perto de explodir pela primeira vez por conta de uma agressão do vocalista contra o baterista Keith Moon na Suécia, o que levou Moon e Entwistle a se recusarem a trabalhar com o vocalista. Foram oito dias de convencimento para que os dois aceitassem Daltrey de volta – e de convencimento de Daltrey a deixar de resolver as coisas na porrada.
Townshend dá a entender que ele nunca botou fé no sucesso do Who nos anos 60, e se preparava para ser artista plástico. É até justificável que, por isso, não tenha sido tão amigo de seus companheiros de banda – mesmo que Daltrey tenha dito o contrário em pelo menos três biografias oficiais do grupo. Incomoda o fato de que as relações pessoais entre os integrantes, sempre apaixonadas e explosivas, tenha merecido tão pouco crédito e atenção. Dá a impressão que Daltrey, Entwistle e Moon eram somente companheiros de escritório com quem ele tomava uma cerveja uma vez por semana ao final da tarde.
Isso fica claro em outro momento crucial da história da banda, quando Townshend prefere passar por cima do fato de que Entwistle e Moon quase saíram do grupo em 1967 para formar o que seria a primeira encarnação do Led Zeppelin, com Jimmy Page e Jeff Beck nas guitarras – Entwistle seria o vocalista. Page compôs uma música para o primeiro álbum do Jeff Beck Group, "Truth", que seria lançado naquele ano. "Beck's Bolero" teve os dois guitarristas na gravação, com Moon e Entwistle completando o time no estúdio.
Os dois avisaram Page e Beck que queriam sair do Who e os quatro discutiram a possibilidade de tocarem juntos. Moon logo percebeu que havia muita "viagem" na conversa, sobre as malucas interpretações e altas ideias, e mostrou ceticismo logo de cara, dizendo que a "possibilidade de aquela banda fazer sucesso seria a mesma de um zepelim de chumbo (lead zeppelin) levantar voo". Não deu em nada, mas Page guardou a sugestão de nome de Moon.
Pete Townshend escreve que ficou sabendo de boatos sobre a insatisfação dos dois músicos e da reunião com Beck e Page, mas não se aprofunda. Se ele dá detalhes interessantes sobre o gerenciamento da banda nos anos 60 e de como participou a contragosto do festival de Woodstock, em 1969, prefere relevar o seu relacionamento com outras estrelas da época. Diz apenas que ficou muito amigo de Ronnie Lane, do Small Faces, mas apenas cita de leve alguns encontros com Mick Jagger, Eric Clapton (de quem se disse muito amigo) e Jimi Hendrix. É lamentável isso, quando se sabe que o guitarrista do Who era considerado o mais bem relacionado da cena inglesa dos anos 60, mantendo amizade forte e constante com todo mundo que importava – além dos citados, Jimmy Page, Jeff Beck, David Bowie, Keith Richards e muitos outros.
Se não bastassem todas as omissões, aparece a questão da suposta homossexualidade – ou bissexualidade. Durante três décadas Townshend, mesmo casado com uma mulher e pai de três filhos, deu declarações dúbias e de duplo sentido sobre a questão, sendo que especialistas garantem que o assunto também já foi abordado em músicas de sua carreira solo, como "Slit Skirts" e "Somebody Saved Me". No livro, ele menciona situações veladas, onde narra encontros em que "não rejeitaria as carícias masculinas", para depois tentar negar que houvesse a consumação de qualquer ato homossexual – ao mesmo tempo em que, em uma passagem, escreve a grande pérola "provavelmente eu era (ou seria) bissexual em termos". Mais vago impossível.
A parte a respeito da morte de Keith Moon, em 1978, é particularmente irritante. Uma página e meia a respeito do fato em si, e mais nada. Ele lamentou a perda, mas reconhece que a fama de insensível foi justa quando do funeral. A descrição da compra de uma casa desejada na beira do rio Tâmisa, por exemplo, mereceu mais espaço e importância.
A forma distanciada como narra os principais fatos talvez seja o maior dos defeitos. Falta um pouco da energia e da emoção que estão presentes, pro exemplo, nas biografias de Dave Mustaine (Megadeth) e Keith Richards. Tudo é objetivo demais, reto demais, organizado demais – ainda que a trajetória, para quem não está habituado a ler e escutar rock, seja bastante confusa.
Townshend parece ter desprezo por fatos que viraram história do rock, como a limusine que Keith Moon jogou na piscina do hotel, ou a interrupção do show da banda em Woodstock pelo ativista Abbie Hoffman. Da mesma forma ele trata a "ressurreição" de Eric Clapton em 1973, que estava exilado havia quase três anos em sua mansão se entupindo de drogas ao lado da namorada adolescente. O líder do Who, alertado por amigos em comum, foi o responsável direto pelo ressurgimento de Clapton, organizando um show beneficente com amigos (entre eles, Ronnie Wood e Stevie Winwood) – pode inclusive ter salvado o amigo guitarrista de uma overdose fatal. Um acontecimento crucial da história do rock é retratado de forma protocolar e enfadonha.
Eric Clapton, em seu show de retorno, tendo ao fundo Pete Townshend, no Rainbow Theatre, em Londres, no dia 13 de janeiro de 1973 (FOTO: DIVULGAÇÃO/ENCARTE DE LP)
A objetividade, por outro lado, é responsável por momentos bons do livro, como as já citadas gravações de "Tommy" e "Quadrophenia", além dos filmes "Tommy", "The Kids Are Alright" e "Quadrophenia". Também é interessante a forma como ele narra as dificuldades pós-morte de Moon, o primeiro fim da banda e como teve dificuldade de se adaptar à vida comum de astro de rock de meia-idade, nos anos 80, sem o mamute do Who para dar suporte. As informações a partir de 1990 são contadas de forma mais intensa, talvez por estarem mais frescas na memória – embora seja lastimável o "sumiço" de Karen Astley, sua esposa entre 1968 e 1994, mãe de seus três filhos. Do nada ele aparece ao lado da pianista e cantora Rachel Fuller, sua "nova companheira".
São vários os problemas do livro, mas grande mérito, e que vale a leitura, é a forma sóbria e sem restrições com que fala de seus problemas afetivos, emocionais e psicológicos. Somente Eric Clapton se iguala neste quesito. Townshend não tem pudores de falar sobre suas inseguranças, sobre sua timidez e seus graves problemas com álcool. Embora se arrependa, não fica remoendo as bobagens que fez e as constantes maneiras pouco elegantes com que tratou muitas pessoas ao longo da vida – em especial o amigo e ex-empresário Kit Lambert e a ex-esposa Karen. Até mesmo a confusa abordagem sobre seus sentimentos supostamente homossexuais mostram uma coragem rara em se tratando de uma figura pública, heterossexual e com filhos.
E justamente este mergulho profundo nos problemas pessoais, que é o maior mérito, é também o maior defeito: relega ao plano secundário a sua relação tempestuosa e afetuosa com os outros três membros do Who. Em nenhum momento ele se refere à briga física com Daltrey durante as gravações de "Quadrophenia", no começo de 1973. Bêbado, Townshend discutiu feio sobre uma vocalização errada e partiu para cima do vocalista com uma guitarra como porrete. Brigão e ligeiro, Daltrey foi mais rápido e o nocauteou com um murro no nariz – "com alvo daquele tamanho, seria impossível errar", gracejou o vocalista depois, em uma entrevista.
John Entwistle, por exemplo, com quem Townshend tinha o melhor diálogo musical, é quase um coadjuvante ocasional na obra, enquanto as biografias mais festejadas do Who dão conta do intenso relacionamento entre os dois motores criativos da banda. Por que Townshend tomou esta atitude?
O guitarrista do Who frustrou algumas expectativas, decepcionando por um lado, mas consegue prender o leitor pelo bom texto, que é leve e flui com naturalidade, como uma grande crônica. Deixa claro o quão complexa é a sua personalidade e tem êxito ao se mostrar um astro de rock mais humano e mais próximo do homem comum – assim como Clapton; Keith Richards, neste quesito, não foi tão bem-sucedido em "Vida". Não deixa de ser uma leitura instigante, desde que o leitor releve as omissões e a eventual falta de apuro histórico em determinadas situações. A importância do personagem vale o mergulho nas quase 500 páginas.
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