Crise sanitária expõe a falta de empatia dentro do rock nacional
Marcelo Moreira
Empatia é certamente a palavra mais usada em tempos de confinamento e isolamento social por conta do covid 19-coronavírus. São milhares as histórias edificantes de solidariedade e de criação de situações em que o bem comum está acima de tudo na questão da saúde – cuidados e preservação de vidas no combate à pandemia.
Entretanto, muita gente está reclamando, com certa dose de razão, cobrando empatia (a capacidade de se colocar no lugar de outras pessoas e em diversa situações) na questão das consequências econômicas da quarentena imposta a várias cidades do undo – ou países inteiros, como na Europa e na Índia.
Com as medidas radicais de isolamento e distanciamento social, consideradas essenciais para conter a disseminação do vírus, os reflexos na economia serão severos. Dependendo do economista, as previsões vão de recessão profunda à devastação no Brasil e no mundo.
A preocupação faz sentido e mobiliza governos em torno de sugestões para amenizar as consequências, ainda que isso, por vias tortas, sirva de base para declarações estapafúrdias, inconsequentes e irresponsáveis do presidente lamentável Jair Bolsonaro, que questiona a eficácia do "confinamento em massa" como ação principal no combate à emergência sanitária.
Não há soluções fáceis para a crise mundial, que com certeza vai provocar recessão em variados graus. Poucos setores poderão aproveitar algumas oportunidades, mas a expectativa geral é de que a imensa maioria dos segmentos sofrerá grandes perdas e que muitos setores terão recuos dramáticos na atividade econômica e terão de demitir.
Pequenos negócios e os informais serão os mais ameaçados. Legiões de profissionais que vivem como ambulantes ou do trabalho diário precário terão sérias dificuldades em passar pelo período mais difícil da crise, a que envolve a quarentena, com toda a população em casa e consumindo só o básico.
A questão é que tem de ser assim mesmo, já que a vida é mais importante e supera quaisquer considerações econômicas que possam ser levantadas. Afinal, é uma crise planetária e que pode matar milhões de pessoas se as medidas acertadas não forem tomadas. O descontrole na Itália é o maior exemplo de que como é necessário op combate à doença, e danem-se as consequências econômicas.
De forma irresponsável e desumana, insuflados pelo inconsequente Bolsonaro, uma parte estridente de pequenos e médios empresários começam a pressionar pelo fim da quarentena no Brasil, ou ao menos, algum tipo de "flexibilização" das regras de distanciamento e isolamento social.
E, de forma deplorável, não são poucos os músicos, lojistas de música e profissionais de empresas de eventos que estão embarcando nessa calamitosa onda, que é nojenta e criminosa.
Especialmente nas redes sociais, gente idiota do nosso meio musical e roqueiro preconiza o fim imediato da quarentena alegando falaciosamente que "o Brasil está quebrando e que a vida está paralisada e morrendo", que "não se pode matar moscas com mísseis nucleares".
Essas imbecilidades, endossadas por um presidente repulsivo, colidem frontalmente com as principais recomendações dos maiores especialistas mundiais em epidemiologia e virologia, alguns deles brasileiros. Colidem também com as orientações do próprio Ministério da Saúde, que agiu de forma correta e elogiável desde o começo da crise.
O ministro Luiz Mandetta, infelizmente enquadrado de forma absurda pelo presidente e por um núcleo político nocivo, começa a mudar o discurso e a endossar as falas criminosas de Bolsonaro no sentido de abrandar as rígidas medidas de contenção do vírus, quando não de extingui-las o mais rapidamente possível.
Não são poucos os roqueiros – apreciadores, músicos, comerciantes e profissionais do meio – que estão repudiando as medidas sanitárias e apoiando a fala criminosa de Bolsonaro, muitos de forma tímida e discreta, mas vários de forma escancarada.
É uma falta de empatia que causa náuseas, justamente vindo de gente que clama desde sempre por "união de cena", por um "movimento solidário no rock" e reclamando da falta de "apoio e atenção" do poder público e de empresas privadas em prol da cultura e das artes.
Desumano tem sido um adjetivo pertinente usado pelos sensatos e de bom senso a respeito da críticas e apelos para o fim do isolamento social, sempre puxando das mangas sujas os argumentos econômicos de que o "mundo não pode parar por causa de um vírus", como vomitaram alguns estúpidos, ou que e a economia não pode ser destruída por causa "5 mil ou 7 mil mortes de gente velha", como defecou pela boca um empresário repugnante do setor de restaurantes.
A desonestidade intelectual é ainda pior a respeito das ironias vindas de gente de classe média – "que legal, vamos obrigar ambulantes, manobristas e mendigos a trabalhar em casa, em home office", "vamos mandar os boletos para os patrões pagarem, ou para os médicos epidemiologistas", "vamos comer na casa do Dráuzio Varela, que defende a paralisação da economia"…
O maior dos argumentos dos que defendem o relaxamento das medidas radicais – e necessárias – é o de que a "Galeria do Rock vai acabar, assim como todos os que vendem produtos musicais".
Sim, o símbolo maior do rock no Brasil em termos comerciais corre o risco de extinção, assim como milhões de negócios pequenos no mundo, muitos deles muito mais importantes e relevantes do que a galeria.
Milhões de músicos estão enfurnados em casa em perspectivas de conseguir recursos no curto e médio prazos para sobreviver. São sintomas de uma grave crise mundial, senão não seria uma crise e não haveria necessidade das medidas radicais.
A falta de empatia é um sintoma não só da desumanização de nossa sociedade, mas do profundo fosso moral em que mergulhou parte da vida inteligente brasileira, efeito colateral devastador da polarização político-ideológica e do radicalismo de vátios matizes.
Os extremos políticos sempre foram carregados de sectarismo e burrice, que costumam ser contagiosos. A eleição de um tosco como Bolsonaro aprofundou o fosso moral e passou a promover a mediocrização da sociedade.
A esmagadora maioria das pessoas que votaram na extrema-direita tem orgulho de ser ignorante, elogia a imbecilidade e tem ojeriza ao conhecimento e à inteligência. Como um vírus perigoso, contaminou diversos setores da sociedade até desembocar nos criminosos ataques à ciência e à medicina nestes temos de combate feroz à pandemia do coronavírus.
Ninguém poderia imaginar que a crise moral desencadeada pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff poderia criar um ambiente altamente tóxico e radioativo em nossa sociedade.
Nem o mais pessimista poderia imaginar que a ignorância se transformaria em virtude e colocaria no poder um fóssil que representa o que há de mais retrógrado e medieval em termos de pensamento político e social.
É muito absurdo que estejamos discutindo esse tipo de coisa, e é deplorável reconhecer que tais pensamentos estão enraizados em parte expressiva dos ambientes roqueiros nacionais, em todos os níveis.
Que a união entre as tribos nunca fez parte de uma "cena" roqueira brasileira é um fato admitido por todos, mesmo em momentos de comoção nacional ou de extrema solidariedade.
O que jamais poderíamos imaginar que é a empatia desaparecesse totalmente na esteira da desumanização progressiva de uma sociedade que sucumbiu à falta de bom senso, ao radicalismo político e à imbecilização geral.
Sobre os Autores
Sobre o Blog
Contato: contato@combaterock.com.br
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.