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Nazismos e bolsonaros: a luta agora é para preservar a democracia

Combate Rock

21/01/2020 06h50

Marcelo Moreira

O local escolhido era uma uma esquina relativamente remota de um bairro da zona leste de São Paulo, mais próximo do centro. "Eu me divirto com essa gente 'chique' e posuda' da Mooca e do [Jardim Anália] 'Canalha' Franco que odeia dizer ou assumir que mora na zona leste", disse rindo o homem de cabelo branco, barrigudo e septuagenário, vestindo uma uma camisa retrô da antiga seleção de futebol da Alemanha Oriental.

O bar escuro e com TV desligada – a pedido nosso – tinha decoração alusiva aos anos 70. Tinha dgarrafas de refrigerantes antigas, quadros alusivos a propagandas de revistas da época e aparelhos diversos – máquinas fotográficas, TV preto e branco, luquidificador, telefones e muito mais badulaques.

Por mais esquisito e fora de moda, era um local cult e vazio, no meio da tarde, o que nos interessava. "O bar é do meu ex-genro, aquele tonto de camiseta regata branca. Boa gente, embora não consiga formular uma frase sem 18 erros de português. Ele me tolera, ao contrário da minha filha, mas acho que tenho sorte."

Clay, apelido que ganhou por espezinhar o ex-pugilista Cassius Clay (que mais tarde torcaria de nome para Muhammad Ali) – "sempre achei que ele atrapalhava a causa negra por sua arrogância e falta de tato" – é professor universitário aposentado de ciências sociais na rede privada de ensino de São Paulo.

Formado pela USP e com mestrado na mesma universidade, se aventurou pelo jornalismo nos anos 70, mas abandonou. "Até hoje jornalista acha que sabe tudo e que é o centro de tudo, tem mania de tentar descobrir as causas de tudo o tempo todo. É incapaz de entender que não dá para compreender tudo com dois ou três telefonemas e criar teses em cima disso."

Nunca gostou de rock, mas tocou em duas bandas progressivas porque sabia um pouco de violino. "Acho o rock uma bosta, limitado e autoindulgente, mas alguém inventou de me chamar para tocar violino numa praia tipo Gentle Giant, Van der Graaf Generator, que é legalzinho, e King Crimson, que é muito bom. Eu era péssimo, mas no começo ninguém percebeu. Depois não deu mais para disfarçar."

Capa do livro 'Van Der Graaf Generator – The Book', sobre uma das bandas que influenciaram as bandas de Clay e que o levaram a tocar volino no rock paulistano (FOTO: REPRODUÇÃO)

Um grande especialista em União Soviética e totalitarismo, pediu para não tivesse o nome identificado e nem o local da conversa anunciado. "Quero evitar problemas para o meu ex-genro. Tem muito pleonasmo por aqui e ainda me relaciono com muita gente do meio acadêmico (pleonasmo, para ele, é o eufemismo para conservador/bolsonarista burro, ele explicou)."

Apesar de sua especialidade, a conversa giraria em torno das recentes manifestações nazistas surgidas dentro do governo federal. Ele tinha informações mais ou menos privilegiadas porque seu filho e seu atual genro são filiados ao PSL paulistano, ex-partido de Jair Bolsonaro. Não bastasse essas desgraça familiar, ainda são evangélicos fanáticos do pior tipo.

"Você tem sorte, fala que sua filha, que é inteligente, não gosta de ler e de rock ainda", ele comenta comigo. "Ela só tem 10 anos. Meus filhos não gostam de ler e não sabem ler até hoje, com quase 40", ri gostosamente a respeito do casal que há anos não conversa com o pai. "Eles são fracassados e me culpam por isso. Cresceram rodeados de livros, discos, filmes, professores e de cultura, mas optaram pelas trevas. E a culpa é minha?"

Apesar do rompimento, ainda term alguma relação com alguns dos quatro netos e com pessoas que rodeiam a família afastada. Na verdade, ele sabe coisas demais. Supõe que quase tudo seja verdade sobre o que rola nas hostes bolsonaristas.

"É impressionante que ninguém tenha se dado conta de que esses caras eram loucos e perigosos", disse secando uma garrafa de cerveja artesanal escura rapidamente. "A questão é que alguma deu errado e os malucos da linha de frente demonstraram que são insanos mesmo, é gente que que acha que pode andar sobre as águas sob a égide de Nosso Senhor Jesus Cristo, amém…"

Clay alerta, entretanto, que isso é muito ruim para a resistência na guerra cultural. "Não tenhamos ilusões: a queda desse tonto da Secretaria de Cultura foi péssima agora. Parece que finalmente caiu a ficha do governo, dos pouco que pensam. Os celerados estão transformando o 'novo Brasil' em uma peça folclórica e piada e isso atravanca o processo e paralisa a implantação do 'projeto'. Precisam tirar o folclore e ser mais discretos. Essas caras são nazistas mesmo."

Na conversa com gente que passeia pelo mundo ultraconservador em São Paulo, já escutou que o "projeto" precisa e vai mudar para continuar na mesma direção. "Com esses governos estaduais conservadores e o governo Bolsonaro, que é uma lástima e desgoverno em todos os sentidos, os ultraconservadores viram uma chance de ouro como nunca tiveram. É agora ou nunca e esperavam um avanço rápido nos costumes, na educação e na cultura, mas a incompetência dos que assumiram e dos que os substituíram atrapalhou."

A questão é bastante simples: perdurando a sequência de pataquadas e gafes diárias, demoraria bastante para que o bolsonarismo apagasse os incêndios, aumentando as chances de que o aparelhamento fascista-conservador atolasse de vez ou, ao menos, parcialmente. "A falta de planejamento e a nomeação de gente burra e primária escandalizou os apoiadores e muita gente dentro do governo. A ideia é controlar mesmo a sociedade de um jeito totalitário baseado na pior religião que existe, mas com uma implementação mais discreta, e competente, e não usando discurso de proaganda nazista na internet."

Pausa para outra cerveja gelada e uma boa porção de sardinha enrolada na cebola. "Eu me afastei muito cedo da esquerda e da luta armada, eram uns moleques e supostos intelectuaizinhos que achavam que tinham apoio popular. Não era preciso ser gênio para perceber que iam morrer ou ser presos. O mundo nao goirava em torno deles. Achama que eram os 'iluminados'."

"Fui cuidar da minha vida e a partir de 1977 me envolvi com sindicatos, mas deixando claro que tinha ranço da esquerda. Riram de mim e me aceitaram porque eu escrevia bem. Aí veio o PT e sua doutrinação stalinista e seus 'críticos' trotskistas", discursou sorvendo um belo gole de pinga mineira. "Aí tudo piorou quando ficou claro que quem mandava era o Lula e virou uma seita. Saí da CUT na hora certa, quando Vicentinho (Vicente Paulo da Silva, deputado federal e presidente da CUT entre 1988 e 1994) assumiu e virou definitivamente um braço do PT. Sou de esquerda? Só um pouquinho (risos forçados e amarelos)."

King Crimson na BBC, em Londres, em março de 1970 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Sem saber mexer direito no celular, Clay procura alguma coisa, enquanto pede outra cerveja e xinga um corintiano que pede para ver um jogo qualquer na televisão, uma reprise de campeonato europeu do fim de semana.

"Vamos ouvir uma bela sinfonia, menos da Filarmônica de Berlim, não quero nada com os germânicos", disse antes que eu pudesse protestar. Sugeri alguma coisa mais recente da Filarmômica de Londres ou de Praga, algo do período romântico ou moderno do começo do xéculo XX. "Duas orquestras vendidas, que aceitam dinheiro para acompanhar bandas de rock."

A solução foi Emerson, Lake & Palmer tocando "Pictures at An Exhibition", ao vivo, em 1971, na cidade de Newcastle, na Inglaterra, saído do YouTube do meu celular. A peça do russo Modest Mussorgski o agradou na versão rock progressivo. E logo o sistema de som moderno para um boteco decadente, mas cult, ecoava uma obra maravilhosa da música erudita.

"Gostava de orquestras e MPB, além de tudo o que era literatura russa", disparou sem ser perguntado após devorar uma sardinha. "Minha mulher, que morreu faz tempo, também era professora e conseguimos comprar um apartamento pequeno aqui na zona leste e um sítio perto de Mairiporã. Não sei o que deu errado, meus filhos me execram porque nunca fomos ricos, embora tenham estudado sempre em escolas boas, quase todas particulares. Fizeram faculdade, mas ruins, de administração, mas parece que não adiantou nada. Enfurnaram-se nas seitas evangélicas mais desprezíveis e abraçaram o tal 'livre mercado'. Como são desinformados e obtusos em todos os sentidos, fracos mesmo, nunca tiveram muitas perspectivas. Só podiam cair mesmo no extremismo."

Embora com certo desgosto, ao pronunciar o veredicto sobre os filhos mostrou-se resignado, o que foi bom porque reintroduziu o assunto sobre o nazismo pairando em nossa sociedade.

"Não dá nem para dizer que é uma coisa geracional. É um negacionismo delirante, de gente que não pensa e não tenta buscar informação. Acreditam em qualquer bobagem. Não sei se meus filhos acreditam em terraplanismo, nunca perguntei e faz tempo que não os vejo, mas não duvido que acreditem", afirma brincando, mas meio desolado. "Mas é muito provável que eles e a gente tosca que os cercam acreditem piamente nessa conversa louca de autoritarismo, arte degenerada, de que vacina que mata e outras merdas parecidas."

Para Clay, é possível encontrar nos jornais, emissoras de TV e jornalismo superficial de internet uma tonelada de explicações para o desalento de uma geração que parece perdida, desamparada e sem perspectivas de prosperar, ou de ao menos estabelecer alguma base para dar uma vida melhor aos filhos.

"O que me preocupa é que nós, professores e intelectuais no campo de oposição ao conservadorismo e ao extremismo de direita, não estamos conseguindo, entender onde foi que a democracia errou e deixou de ser importante", Clay vociferou após deglutir outra sardinha. "Democracia é sinônimo de liberdade e está diretamente ligada ao conhecimento, mas no meio dos anos 90, em algum momento, alguns otários, provavelmente fracassados de todo o tipo, começaram a culpar a democracia representativa, a ênfase nos direitos humanos e políticas de redução da desigualdade social pelos males do mundo. Como esse tipo de coisa pôde prosperar?"

O grande problema, para o veterano intelectual, não é a proliferação de ideias fascistas – é uma consequência, na verdade -, mas a progressiva perda de fé na democracia. "As pesquisas do Datafolha que mostram que mais de 60% da população ainda prefere a democracia não se coadunam com os resultados das eleições, onde claramente a maioria votou a favor de alguém não acredita na democracia e a depreda quase que diariamente."

E ele investe duro contra a classe política e sua total incompetência na formação dos cidadãos. "O PSDB nunca teve interesse nisso, mas quando a gente vê o PT e a esquerda assumirem o governo imaginávamos outra postura. Não só isso não aconteceu como os governos esquerdistas chafurdaram na mesma pasmaceira política em que tudo mundo chafurda. Essa mania de 'projeto de 20 anos de poder' leva à alienação do processo político e reforça o fisiologismo e o clientelismo. E aí vem aqueles palermas de 2013 e começam a questionar qualquer coisa, chegando ao cúmulo de colocar em dúvida a democracia e a sua importância."

A conclusão é triste. "Meus netos, que já começam a entender um pouco das coisas, não dão a mínima para a democracia. Ninguém se importou em dizer a eles e à geração deles o tamanho da importância da liberdade. São alienados e não demonstram nenhuma preocupação para nada, muito menos política. São as mentes férteis para aderir ao autoritarismo fascista. Meus filhos aderiram porque são estúpidos, já que tiveram quase toda a informação de que precisaram – nunca é suficiente, mas enfim…"

Integrante de grupo neonazista detido no Rio Grande do Sul: democracia em perigo (Foto: Reprodução)

Tem mea culpa nesta história? "Não faz diferença. Ok, minha geração e as duas que vieram depois fracassaram em reforçar os ideais democráticos e não percebeu o quão perigoso era o pensamento hibernado de ultraconservadores. Da mesma forma que os esquerdistas se amontoaram no MDB nos anos 70 e em várias legendas antes de finalmente desfrutarem de seus partidos, os ultraconservadores envergonhados ficaram escondidos em um monte de partidos fisiológicos que alugaram a democracia e a depredaram. Depois do golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, as portas do inferno foram abertas e os fascistas ganharam as eleições criminosamente com mentiras e táticas claramente ilegais. Não conseguimos preservar a democracia e mostrar como ela é necessária. E os ulraconservadores tomaram conta."

Quando eu falo de resistência, ele sorri tristemente, mas ataca com fúria a última sardinha em conserva com cebola. "Não existe resistência quando a maioria 'normaliza' o que está ocorrendo e não se importa com democracia ou ditadura. O que temos é resignação. Antes de resistir é preciso demolir a estagnação e a resignação. Como fazer isso diante de um povo que não quer lutar – e nem quer saber o porquê de ter de lutar? Você fica insistindo na pasmaceira do rock diante do que tá rolando em seus textos. Hoje nem existe mais rock, nem existe mais música, nem existe mais ativisimo. Quando ocorrer a ditadura de novo, o que é possível, e todo mundo começar a apanhar só porque está usando uma camisa de cor que incomoda o policial, é que veremos se teremos algum tipo de oposição."

O assunto termina depois de muitas horas e muitas cervejas. E a constatação é preocupante. "Olhe para esses caras de classe média aqui no bar. Alguns estão falidos e demitiram todo mundo, mas não parecem preocupados. Creem que o Brasil vai melhorar depois do PT – e lá se vão quase quatro anos – e nunca se importaram com democracia. O corintiano que xinguei apoia ataques contra moradores de rua, ataques da PM contra bailes funk na periferia e falou um monte contra o Porta dos Fundos por causa do especial de Natal. Você acha que esse cara tem condições ou, no mínimo, algum interesse em entender o que está acontecendo ou o que significou a tentativa de censura ao Porta dos Fundos? Talvez nem saiba o que é democracia ou ditadura. Como ele vai passar algum valor democrático para o filho dele? É por isso que o nazismo vai continuar na Secretaria de Cultura. É um projeto político de poder cultural, e depois mais amplo, ventilado dentro das hostes conservadoras e apoiado por elas."

Com a conta paga, Clay arrematou, muito pessimista (tanto que me surpreendeu, já que ando mais pessimissta do que nunca): "O secretário irritou todo mundo porque explicitou algo que era escamoteado, mas acabou fazendo um favor ao bolsonarismo: foi apeado, será substituído por alguém que será mais discreto e eficiente e o projeto de fascismo seguirá adiante, sob aplausos dos evangélicos analfabetos e acéfalos (os que pensam já se afastaram) e dos ultraconservadores/ultraliberais antidemocráticos. E certamente verei meus netos aplaudirem os assassinatos de moradores de rua e a PM batendo em morador da periferia e em quem protesta por democracia. Não ficaria surpreso se, quando eles forem adultos, democracia se torne apenas uma palavra no dicionário e desapareça dos livros didáticos. Neste momento, antes de nos preocuparmos com o nazismo e fascismo avançando, temos de garantir a preservação da democracia."

 

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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