O medo do extremismo diante do Rage Against the Machine
Marcelo Moreira
Um anúncio de procura por músicos em vários sites dos Estados Unidos causou surpresa e curiosidade nos Estados Unidos neste começo de ano: procura-se um vocalista que tenha posições políticas de direita e valores "patrióticos".
A ideia, segundo o texto, é fazer uma contraposição ao Rage Against the Machine, que anunciou shows em em 2020 após mais um longo hiato. A banda não informou o seu nome ou os de seus integrantes. Leia mais aqui.
A banda californiana é uma referência de música engajada nos anos 90 e 2000, com notórias simpatias por posições de esquerda e de viés socialista, ainda que tenha sido bastante crítica, desde sempre, nos Estados Unidos, ao Partido Democrata, que é menos conservador que o o rival, o Republicano.
Não deixa de ser inusitado o requisito para fazer parte de uma banda de rock, um gênero musical outrora associado à juventude, à rebeldia, à contestação e a ideais mais humanistas.
O fato de citar nominalmente o Rage Against the Machine é uma amostra clara que de que o rock, em sua maior parcela de músicos e aficionados, ainda é associado a posições mais "liberais", digamos assim, na América do Norte.
Ou seja, artistas de direita claramente assumem que sempre estiveram em desvantagem na disputa narrativa política no rock norte-americano, por mais que haja artistas estridentes desse espectro político, como é o caso do guitarrista e cantor veterano Ted Nugent, ou guitarrista dos Ramones, Johnny Ramone.
Não há nada de errado em ser roqueiro e ser direita e conservador. É apenas esquisito e diferente defender posições que, na maioria das vezes, vão contra alguns dos ideais mais marcantes do rock.
Se há uma convergência em quem gosta de rock de valorizar a busca da liberdade e mantê-la a todo custo, até para que tenhamos o direito de discordar, em muitas coisas a política se encarrega de separar os fãs em outros aspectos.
Muita gente no Brasil e nos Estados Unidos, na era Trump-Bolsonaro, caiu na esparrela de que defender diminuição da desigualdade social e econômica e direitos humanos é coisa de comunista.
Essa gente abomina políticas de assistência social e de gastos públicos para a diminuição da pobreza e erradicação de doenças epidêmicas, por exemplo.
No Brasil não são poucos os que consideram o SUS (Sistema Único de Saúde) e universidades públicas gratuitas – e é espantosamente grande o número de roqueiros e fãs de rock que pensam dessa maneira, ou seja, de que gastos dom saúde e educação são apenas isso, gastos púbicos e mais nada.
É a face mais desafiadora do liberalismo econômico baseado em um capitalismo predatório e na máxima meritocracia possível – ou suposta meritocracia: cada um por si e pé na tábua. Se você é pobre ou menos rico é porque não se esforçou ou não é competente.
Claro que é um exemplo exagerado, mas serve para ilustrar um pouco o pensamento liberal de uma direita capitalista que não necessariamente é insensível, mas que tem outras prioridades e não enxerga a pobreza e a extrema desigualdade social como grandes problemas.
Em tempos duros de trumpismo e bolsonarismo, muitos adeptos da direita se sentiram estimulados a sair da toca e externar seus pensamentos e seus apoios – e isso ocorreu também no rock.
Na maior parte das vezes, é um pessoal esclarecido, embora um pouco desinformado, mas que tem opiniões pertinentes e passível de debate, onde as divergências nem sempre dizem respeito aos objetivos, mas quase sempre aos caminhos e aos métodos.
O problema, reconhecido tanto no Brasil como nos Estados Unidos, é que os novos ventos políticos tiraram das catacumbas um extremismo político de direita que tem viés autoritário e violento.
Bolsonaro e Trump são toscos e têm pouco apreço pelo debate e pela conversa, e seus eleitores quase sempre espelham essas características.
São políticos que incitam o ódio e a intolerância contra minorias e adversários, com ojeriza a submeter seus atos a um parlamento frequentemente hostil e que quase sempre abominam o pluralismo e a diversidade. Consideram o congresso como "entrave" ao desenvolvimento e direitos civis e humanos como "desperdício de tempo e dinheiro".
É esse tipo de pensamento extremista que aflora quando lemos um anúncio estapafúrdio e ridículo como a procura por "um(a) vocalista de direita".
É gente que se incomoda com a existência de um Rage Against the Machine, que luta por justiça social e redução da pobreza, que abomina a desigualdade econômica e a destruição do meio ambiente.
Seus integrantes vêm de famílias de intelectuais e ativistas pelos direitos humanos e civis e sua música reflete essa formação e a sua luta contra políticas de exclusão de minorias (agora nem tão minorias assim), de incitação ao ódio com inspiração religiosa e contra a discriminação racial e sexual.
Na falta de bons argumentos, os críticos do Rage Against the Machine preferem xingá-los de comunistas. É mais fácil, por mais que isso exponha a extrema indigência intelectual e cultural de quem xinga.
O próprio texto do anúncio denuncia a pobreza de ideia e de argumentos, deixando claro que os integrantes são "patriotas, antiliberais e anticomunistas", ao mesmo tempo em que assumem que estão bem atrás na disputa narrativa.
Não é por outro motivo que, no Brasil, entre quase 50 partidos políticos existentes, só um se autodefine como de direita, o abominável PSL, que elegeu Jair Bolsonaro e agora o renega. Essa informação está em uma pesquisa realizada pelo Datafolha.
Todos os outros partidos considerados de "direita" preferem se "alocar" nas denominações "centro" ou "centro-direita", o que não passa de mera abstração política.
Há ainda um temos grande de partidos e políticos de serem rotulados de direitistas, o que mostra como essa gente, em sua enorme maioria, é despreparada/desqualificada para o debate – justificando o medo de uma banda como Rage Against the Machine, por exemplo.
O anúncio poderia até chamar um pouco de atenção, em outros tempos, mas dificilmente se tornaria notícia. Entretanto, nos tempos de trevas culturais em que vivemos, o recrutamento de um músico de "direita" unicamente para se contrapor ao discurso do Rage Against the Machine extrapola a questão musical. Tornou-se meramente um fato político rasteiro, e mais nada.
Seja como for, será curioso e instigante ver como tal banda se enquadraria dentro do mercado defendendo teses e posições que o rock historicamente repudiou, como o predomínio do dinheiro sobre a questão artística, do jabá (suborno a produtores e diretores de rádio e TV) para impulsionar CDs, músicas, DVDs ou shows, entre outros.
Será que essa banda teria estofo e coragem para defender o governo Trump quando uma guerra em algum lugar estourar? Farão como um monte de imbecis que apoiaram o governo Bush nas guerras no Iraque e no Afeganistão alegando que eram "patriotas"?
O anúncio é ridículo sob todos os aspectos. Os extremistas de direita – machistas, racistas, discriminatórios e incentivadores do ódio do fascismo – estão empoderados temporariamente e estão estimulados a sair das cavernas para empestear o mundo com seu lixo ideológico. Perderam a vergonha, e o anúncio de recrutamento, que é uma piada, demonstra toda a falta de pudor do protofascismo.
Apesar de o riso ser inevitável neste caso, não dá para não se preocupar com esse tipo de manifestação. A política do confronto e do alargamento de abismos é a tônica da direita mais radical em várias partes do mundo.
A guerra cultural é só a linha de frente de um enfrentamento mais intenso que ocorrerá em 2020.
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