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A imagem como tudo - e o vertiginoso declínio da música como produto

Combate Rock

17/12/2019 07h02

Marcelo Moreira

A mudança foi muito rápida e músicos e ouvintes/espectadores ainda nem se acostumaram com a nova era. Estamos ouvindo e curtindo música de forma diferente. E quando imaginávamos que nos acostumaríamos com a tecnologia e com a internet, eis que tudo muda novamente.

Assim como o desmoronamento da antiga indústria do entretenimento e da música forçou a procura por novas maneiras de divulgação e disseminação de produtos – notadamente a música -, agora é a vez de a mudança de hábitos desestruturar aquilo que conhecíamos como "a nossa relação com a música".

Os mp3 e os arquivos digitais trocados ilegalmente (e depois legalmente por conta da impossibilidade de controle) forçaram a uma "democratização" dos ativos culturais, digamos assim, tornando o acesso mais fácil aos produtos.

O lado bom é que mais gente chega mais rápido a muita coisa antes inacessível. O lado ruim é que o produto perde muito do seu valor, tanto monetário como o "valor agregado". Quase tudo ficou descartável, recebendo muito menos atenção do que antes.

Não há mais hits, não há mais clássicos, não se valoriza mais a canção. A cultura de singles foi retomada, mas da pior forma possível, pois as músicas mal duram uma semana nos aparelhos celulares e nas plataformas de streaming.

A velocidade se tornou inimiga de qualquer tipo de perfeição e de qualquer música bem feita ou bem tocada. Para que lançar um álbum novo se as pessoas não vão ouvir e não vão se interessar? Para que tocar uma música legal e diferente em um show se neste momento as pessoas decidem ir ao banheiro ou comprar cerveja? Para que compor uma música se os comodistas só querem ouvir aquele hit suado e desgastado?

Como tudo ficou grátis e de fácil acesso, tudo perdeu o seu valor, sentimental e monetário. As pessoas só querem uma pitada de alguma coisa.

Led Zeppelin no tempo em que eram deuses eque pisavam sobre a Terra (Foto: Divulgação)

A música ficou de graça, e as pessoas acham que tudo deve ser de graça na internet, principalmente a informação. Com isso, as pessoas se negam a pagar por conteúdo bom e de qualidade. Satisfazem-se com o raso e superficial, o que explica os investimentos aquém do esperado em jornalismo sério digital – uma consequência é, entre outras tantas, a decadência dos grandes portais e sites vinculados a empresas importantes e sérias por conta da extrema pulverização informativa.

No mundo digital em constante transformação  – e que privilegia, por força de mercado e de (falta de) interesse do público -, temos então a disseminação da articialidade e da superficialidade na cultura e nas artes.

Um bom resumo disso foi publicado recentemente pelo jornal Folha de S. Paulo. O jornalista Thales de Menezes identificou com sensibilidade e propriedade que a música perde ainda mais valor do que já tinha perdido diante da atitude de artistas e do mercado em si.

Não basta fazer música e divulgá-la. A canção virou acessório em um mundo em que o artista, qualquer que seja, precisa aparecer. Não adianta mais a música ser boa e ter qualidade. O público agora quer outra coisa: quer saber como foi feita a divulgação, como foi veiculada (qual a plataforma), como estava o cabelo do "artista", que ele vestia, quem o apoiou no clipe, que empresas o patrocinaram, e por aí vai.

Como a música perde valor e atrai cada vez menos interesse, aliado aos formatos digitais de execução e disseminação, temos então um mundo desprovido de métrica para entender o que está acontecendo.

Ou seja, não há mais paradas de sucesso, já que fica quase impossível medir quem está sendo mais ouvido ou quem está vendendo mais, já que as músicas estão sendo cada vez menos escutadas e ficam em "exposição" por um tempo cada vez menor.

Será que a música como a conhecemos foi reduzida a isso?

Não se trata de combater o avanço tecnológico dos arquivos digitais ou de esbavejar contra os novos hábitos de cultura dos jovens – sobretudo deles – às portas da terceira década do século XXI.

Trata-se de observar e tentar entender qual o significado da música na vida das pessoas e do formato canção nestes tempos dolorosos onde a cultura e a arte precisam se adequar ao futuro que já chegou e se proteger dos ataques ultraconservadores pelo mundo – gente babando para implantar a censura dentro de suas políticas de privilégio da intolerância.

Joe Bonamassa lidera a geração de novos artistas pop que emergiram do underground e tentam resistir à desvalorização da música (FOTO: DIVULGAÇÃO)

As perspectivas não são boas para quem gosta de ouvir e saborear um bom rock'n'roll ou um bom jazz'n'blues, ao menos do ponto de vista da criação artística.

Com o desestímulo cada vez maior à composição e elaboração de novas peças, o caminho que se desenha é um parecido com o que atingiu a música erudita a partir dos anos 70 e 80 do século passado: orquestras sinfônicas e filarmônicas cada vez mais reproduzindo grandes obras do passado e dedicando muito pouco tempo a obras contemporâneas.

São doses cavalares e maciças de Beethoven, Bach, Paganini, Rachmaninoff, Verdi, Strauss, Mahler e Holst, entre outros, e quase nada de autores mais recentes. Tirando os especalistas e estudiosos, quem é capaz de citar um grande compositor de música erudita nascido após 1970? Ou mesmo 1950?

Terá a música pop, incluindo o rock, o jazz e o blues, o mesmo destino? Gêneros relegados a meros nichos de mercado, restritos a ambientes específicos? A confrarias de iniciados, como fumantes de charutos cubanos ou de narguilé de sabor tal?

Será que as pessoas vão se satisfazer a meros fragmentos musicais produzidos roboticamente seguindo instruções de algum algoritmo qualquer? Será que a cor do cabelo de Anitta ou Lady Gaga ou a marca de seu xampu vai ser mais importante do que o som que elas supostamente criam?

Já escrevemos bastante aqui no Combate Rock, ao longo de nossos quase dez anos de existência, sobre as mudanças importantes no mundo da música e sobre o fato de como ela perdeu o valor agregado – ou seja, como ela ficou desimportante e descartável, de como as pessoas perderam o compromisso com a música.

Nunca nos iludimos achando que a maioria da população, desde sempre, teve uma relação sadia com as artes. Mesmo nos anos 60, 70 e 80, quando o auge da apreciação da cultura pop construiu uma indústria rentável e importante, era perceptível que apenas uma parcela da população tinha apreço e tinha um consumo frequente e aparentemente consciente – a ponto de valorizar o produto e sustentar essa indústria relevante do entretenimento.

Havia um mercado sólido, que sustentava a existência de bandas mastodônticas, como Rolling Stones,  The Who, Queen, Led Zeppelin e Pink Floyd, e também um ambiente paralelo, como a cena de rock progressivo conhecida como Cena de Canterbury, totalmente underground e pretensamente como arte superior – bandas como Henry Cow.

Até mesmo a periferia nerd do rock conseguia espaço e ser relativamente sustentável. Havia público e cena, assim como no underground pnk – antes durante e depois da explosão do movimento.

A pulverização do mercado e as mudanças abruptas nos hábitos de consumo enterraram esse mundo que atribuía um outro tipo de valor à música e aos artistas.

Este livro conta em detalhes como começou a derrocada da indústria da música e como a pró´pria música perdeu valor e ficou gratuita (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Quem faz música hoje têm poucas perspectivas de viver de sua arte, e até mesmo têm poucas chances de observar ao menos um pouco a valorização de seu trabalho enquanto apreciação artística.

Essas reflexões podem ser pessimistas, dependendo do ponto de vista, sempre com um olhar que de alguma forma é saudosista. Admito até que pode ser uma conversa meio boba de tiozão que ainda gosta de ouvir The Who e Yardbirds, mas que adora também conhecer coisas novas, como os guitarristas de blues Joe Bonamassa, Danny Bryant, Laura Cox, Samantha Fish, Ally Venable e tantos outros interessantes que ainda resistem.

Não deixa de ser um pouco assustador verificar a velocidade das alterações de hábitos de consumo que colocam a música quase em um papel secundário em detrimento de outros fatores dentro da indústria do entretenimento.

Como vem acontecedo desde a invenção do fonógrafo, da eletrificação dos instrumentos, dos LPs, dos CDs, dos DVDs, dos arquivos digitais e de outras transformações na maneira de ouvir música, certamente haverá uma nova adapatação. O ato de curtir um bom rock'n'roll vai ganhar novos contornos e sublimar as nossas preocupações.

Entretanto, não deixa de ser angustiante observar a derrocada, que torçamos para ser monmentânea, da música popular enquanto hábito cultural.

Quando verificamos que as paradas de sucesso sumiram e que está muito difícil estabelecer quem são os músicos e artistas preferidos por conta da própria música – e não por causa do cabelo ou do tipo de colã que a cantora usa ou tipo de coreografia que ela criou – é sinal de que precisamos pretsar muito mais atenção no que está sendo tocado, estudar o que está sendo consumido e entender o porquê de a canção não estar mais atingindo os corações das pessoas – principalmente os jovens.

Será um sintoma de declínio do interesse pela cultura er pelas artes diante da avalanche de informações a que somos submetidos a cada minuto? Será um sintoma de decadência incentivada pela indústria do lucro fácil e artificial do entretenmento fugaz e de baixo valor agregado, com conteúdo próximo de zero?

Será que nós mesmos não sucumbimos a esse mesmo conjunto de que nos aterrorizam – ou que só agora nos aterrorizaram?

O que estamos fazendo para que nossos filhos e sobrinhos e netos ao menos manifestem o mínimo interesse em ouvir música boa – ou mesmo música ruim, mas que tenha alguma substância?

Chegamos ao ponto de nos contentar em aplaudir jovens que ouvem coisas pavorosas, mas que pelo menos ouvem e se interessam, ao invés de fazer da música – qualquer uma – mera trilha sonora de elevador, de uma rápida pedalada ou de rápida curiosidade por conta de um elemento lateral e fortuito da mesma canção?

Quando chegamos à conclusão de que a imagem do cantor/músico é o que movimenta o mercado, e não mais a obra em si, é sinal preocupante de que o dilema não só não tem solução à vista como o buraco pode ser muito mais fundo do que imaginamos.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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