Jeff Beck é o principal estilista da guitarra rock
Marcelo Moreira
A cena é antológica – e raríssima: a banda toca um rock furioso em um pequeno teatro de escola para uma plateia chapada e anestesiada. O ator principal, em sua paranoia, entra no recinto à procura de alguém e se admira com a hipnose provocada pelo quinteto.
Algumas pessoas dançam mecanicamente sob o efeito do ácido ou da maconha. De repente uma das guitarras começa a falhar, irritando seu "dono".
Depois de seguidos "brancos", ele fica possesso e resolve destruir o instrumento contra os amplificadores. Imediatamente, a plateia sai do transe e um tumulto generalizado ocorre dentro do teatro.
A banda em questão são os Yardbirds, que na ocasião executaram "Stroll On" e que tinha como dupla de guitarristas Jeff Beck e Jimmy Page, amigos desde a infância.
A cena está registrada no mítico filme "Blow Up – Depois Daquele Beijo", de Michelangelo Antonioni, filmado e lançado em 1966 – originalmente, a banda escolhida era The Who, que recusou participar.
A imagem é raríssima porque é a única que registra Beck e Page juntos na banda – já que meses depois o primeiro sairia para uma carreira solo bem-sucedida, mas acidentada, o que seria uma característica de sua personalidade.
Mestre das seis cordas e considerado referência para toda uma geração – ao lado de Page, Jimi Hendrix, Eric Clapton e Keith Richards -, Jeff Beck é mais do que estilista do instrumento: é a sua própria encarnação.
É um dos poucos músicos da humanidade que é capaz de ser reconhecido imediatamente pelo timbre que consegue -um grupo restrito que inclui Hendrix, Miles Davis, John Coltrane, Muddy Waters, Little Walter, Eric Clapton, Keith Richards, Ritchie Blackmore, Rick Wakeman, Keith Emerson, Keith Moon, Jaco Pastorius, Buddy Rich e mais alguns outros.
Recluso, ranzinza e temperamental, quase sempre impôs sua vontade e nunca teve dúvidas de como conduzir sua carreira, ainda que o caminho fosse tempestuoso e pouco recomendável – sorte de quem admira a boa música.
Embora fosse quase profissional com sua primeira banda de verdade, The Tridents, tornou-se músico de verdade quando foi indicado por Jimmy Page para substituir Eric Clapton nos então emergentes Yardbirds em 1965.
Page era músico de estúdio e muitíssimo amigo de Clapton. Este estava saindo atritado da banda e não aceitou o convite para substituí-lo – não queria chateá-lo, mas o fato é que ganhava mais como músico de estúdio.
Como também era amigo de ensaios de Beck desde a adolescência, indicou o impetuoso guitarrista de 19 anos de idade. Um ano depois, Page decidiu largar o estúdio e aceitou entrar nos Yardbirds para tocar baixo, no lugar de Paul Samwell-Smith, outro que brigara com todo mundo. Chris Dreja, o outro guitarrista, sentiu a barra pesar e logo propôs assumir o baixo, para deixar Page livre nos duelos com o amigo.
A personalidade inquieta de Beck não suportou dividir os holofotes com o futuro líder do Led Zeppelin. Não brigou com Page, mas abandonou os Yardbirds no meio de uma turnê pelos Estados Unidos em 1966, exacerbando a sua insatisfação co os rumos mais psicodélicos e menos blueseiros do quinteto.
Page não gostou, mas não levou para a frente a birra com o amigo temperamental, tanto que o ajudou a montar logo em seguida o Jeff Beck Group, que tinha Rod Stewart nos vocais e o futuro stone Ron Wood no baixo.
Blues pesado e extremo, influenciado por Jimi hendrix Experience e Cream, e um pouco menos por The Who, Beck passou um ano ao vivo lapidando seu quarteto extraordinário (c0mpletado pelo competente baterista Mick Waller).
"Truth", o álbum de 1968, é puro blues aditivado, com uma guitarra possessa e demoníaca, e vocais ensandecidos. Jimmy Page ajudou a produzir o álbum e ainda compôs a instrumental "Beck's Bolero", duelando com o amigo e ainda contando com a participação da cozinha do Who – Keith Moon (bateria) e John Entwistle (baixo).
Foi durante essa sessão de gravação que Entwistle e Page começaram as conversas para montar uma nova banda, tendo Beck e Moon no time. As coisas não andavam boas no Who e a cozinha queria debandar.
Beck gostou da ideia de dividir os vocais com Entwistle, mas Moon tratou de desarmar a "bomba", afirmando depois de muita cerveja ao final da gravação que não daria certo.
"Uma banda como essa, pesada e louca, não subiria nas paradas. Seria o mesmo que a gente esperasse que um zepelim de chumbo voasse", disse o alegre e piadista baterista.
Aquele zepelim não voou, mas Page não esqueceu a piada: em meados de 1968, com os Yardbirds esfacelados e seus integrantes debandados, chamou dois novatos e um mestre dos estúdios para cumprir algumas datas pendentes e finalmente criar o seu grande porjeto em setembro, o Led Zeppelin.
O Jeff Beck Group parecia decolar cada vez mais, só que a insatisfação pessoal e musical de Beck predominou. O segundo álbum, "Beck Ola", de 1969, manteve o excelente nível do anterior, mas o ego falou mais alto: ao final de um show em San Francisco, alguém entrou no camarim e se dirigiu a Rod Stewart, dizendo "Parabéns, Beck, você foi muito bem. e o seu guitarrista parece ser muito bom".
Foi a senha para o fim daquela encarnação no retorno a Londres. O guitarrista resolveu abraçar o rhythm and blues e o soul, gravando dois álbuns neste estilo com músicos renomados norte-americanos, enquanto que Stewart e Wood se juntaram ao trio remanescente dos Small Faces para criar uma lenda dos anos anos 70, The Faces.
A fase soul-funk de Beck foi prolífica e bastante criativa, mas não rendeu dinheiro e sucessos esperados. Foi a deixa para mandar todo mundo embora e abraçar o hard rock quase heavy metal em 1972.
Com os norte-americanos Tim Bogert (baixo e vocal) e Carmine Appice (bateria), ambos vindos do Vanilla Fudge e do Cactus, criou a locomotiva Beck, Bogert and Appice, power trio na melhor acepção do termo. Incendiário e furioso, durou o tempo exato das ambições de Beck: um álbum de estúdio e outro ao vivo.
Sem se dar ao trabalho de avisar os dois colegas, embarcou em vários projetos paralelos e decidiu finalmente por uma carreira solo surpreendendo todo mundo, abraçando o jazz. E tome mais obras primas com "Blow by Blow" (1975) e "Wired" (1976), na melhor tradição instrumental.
Em 1977 começa uma associação com a banda do tecladista norte-americano Jan Hammer, que depois ficaria famoso como compositor de trilhas sonoras para o cinema.
Embora lucrativa, a fase não foi tão inspirada, jogando Beck em um período sabático longo. Voltaria apenas em 1984 com o superestimado "Flash", álbum em que retoma a parceria com Rod Stewart no clássico "People Get Ready".
O som ficou mais modernoso e pesado em "Jeff Beck's Guitar Shop", de 1989, seguindo a tendência do álbum anterior, com o uso muito teclado e guitarras com efeitos sintetizados, ao mesmo tempo em que se aventurava em trilhas sonoras de filmes, com uma colaboração improvável com Jon Bon Jovi para a trilha de "Blaze of Glory", estrelado pelo cantor do Bon Jovi.
Os anos 90 marcam novo período sabático, com o seu ressurgimento em 1999 com "Who Else", que marca uma guinada para a música eletrônica, o que desagradou bastante os puristas sem, no entanto, agregar um novo público. Apesar da música eletrônica ter imprimido um tom artificial, o álbum tem bons momentos, como "Brush with the Blues" e "Declan".
Só de pirraça, ele insistiu na praga eletrônica e cometeu mais dois álbuns pouquíssimo inspirados, "You Had It Coming" (2001) e "Jeff" (2003) antes de mergulhar em outro período de silêncio.
Renovado e mais blueseiro, chamou a prodígio do baixo australiana Tal Wilkenfeld para cair na estrada em 2007 respirando blues e se tornando um dos eixos do Crossroads Blues Festival, de Eric Clapton.
Em 2010, após novo hiato nos palcos e nas gravações, lança um tremendo álbu, "Emotion and Commotion", em que passeia pelo blues, pelo jazz, pelo cancioneiro norte-americano sofisticado e pela música erudita.
Para surpreender a todos, "Loud Hailer", de 2016, é outra pancada no ideário roqueiro daqueles ainda presos ao classic rock. Flertando com o hip hop e com ritmos eletrônicos mais modernos, concebeu uma obra que trouxe frescor à carreira longeva e ao próprio rock do século XXI.
Irascível, genioso e arrogante, Jeff Beck foi um músico que alargou as fronteiras da música popular. Inquieto e insinuante, estabeleceu padrões elevados dentro do mercado musical e raramente fez concessões.
O rótulo de "gênio" concedido a ele é uma unanimidaden entre músicos, produtores e fãs, um dos poucos artistas a ser nomeados três vezes no Rock and Roll Hall of Fame – com os Yardbirds, com o Jeff Beck Group e como artista solo.
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