Nenhum de Nós relança álbuns e reforça a crença na valorização do conteúdo
Marcelo Moreira
Repostagem
Uma banda que acredita na força de sua narrativa e no conteúdo diferenciado apresentado em mais de 30 anos de carreira. É dessa forma que os gaúchos do Nenhum de Nós continuam trabalhando diante de um mercado fonográfico assolado por mudanças avassaladoras e de novos hábitos de consumir música.
Menos de um ano do lançamento de seu mais recente álbum, "Doble Chapa", que é, de certa forma, uma síntese estética das três décadas da banda, o grupo está empenhado em um projeto que há tempos esperava por uma oportunidade para ressurgir.
O combo "Paz e Amor", em CD duplo, chega ao mercado depois do fim de uma negociação jurídica com a antiga gravadora da banda e será editado pela Radar e Ímã Records.
O pacote reúne "Paz e Amor", o trabalho de estúdio de 1998, e "Paz e Amor Acústico", gravado ao vivo em Porto Alegre em 2000.
"Quisemos dar um tratamento adequado a este trabalho após a solução do problema com o espólio que envolvia os proprietários da Paradox. Não tínhamos conseguido reeditar o álbum como queríamos, já que consideramos a obra bastante importante dentro de nosso catálogo", diz Thedy Corrêa, vocalide umasta e guitarrista do Nenhum de Nós.
"Paz e Amor" é um disco emblemático de uma fase da banda em que a maturidade revelou músicos plenamente conscientes de que o grupo tinha muito a dizer, como sempre, mas que podia ousar ainda mais em todos os sentidos. Tem coisas muito boas como "Da Janela", "Você Vai Lembrar de Mim" e "Eu Sei", além da faixa-título, que é um hit poderoso e de tanto sucesso como os clássicos dos anos 80 do grupo.
Sobre "Paz e Amor", a canção, e sua composição, o músico faz um retrato que na verdade é o modo de funcionamento do quinteto: "Essa canção teve uma letra construída aos poucos. Quando repassei ao Carlão (Carlos Stein) ela não tinha refrão. Quando estávamos sentados no chão do estúdio Téc-Áudio, repassando o que tínhamos para gravar na demo que estava sendo elaborada, o Carlão tocou no violão e, com a fagulha da inspiração, o refrão brotou. Foi um processo semelhante ao surgimento do refrão da Camila".
"Paz e Amor Acústico" foi gravado ao vivo em Porto Alegre, no Theatro São Pedro em dezembro de 2000, porém só foi lançado em 2009.
Sempre na tentativa de fugir do óbvio, e conseguindo na maioria das vezes, o Nenhum de Nós fez boas versões para "Tão Diferente", "Paraíso" e "Tudo Que Passou", e surpreendeu nas releituras de "Jealous Guy" (John Lennon), "Abraços e Brigas" (Edgard Scandurra) e "Metamorfose Ambulante" (Raul Seixas).
E nada melhor do que comemorar os 20 anos de lançamento do álbum – e dez do CD acústico ao vivo – para reverenciar essa peça importante do catálogo do grupo.
"Os direitos para a reedição dos dois albuns estavam travados e sabíamos ue havia uma demanda de fãs mais novos por acesso ao disco original, de 1998. Quando se tornou possível disponibilizar esse material, pensamos em um formato diferente, juntando os dois álbuns relacionados em um produto diferenciado e com material de qualidade. Era necessário que isso ocorresse", revelou o vocalista.
É uma iniciativa corajosa, já que o mercado mudou muito nos últimos 20 anos. A música se tornou um bem descartável pela facilidade com que se consegue desde o começo do século as músicas de graça em arquivos digitis na internet.
O que uma iniciativa como esse combo pode agregar à carreira de uma banda trintona, ainda que com um grande prestígio e um enorme respeito? Corrêa não titubeia na resposta: "É uma questão de valorização da narrativa. Cada artista sabe como deve se expressar e em que formato. Além disso, cada narrativa pede um formato específico, que pode ser um álbum com cinco, dez ou quinze músicas. O que não dá, em minha opinião, é submeter a narrativa a uma necessidade eventual do mercado. Para nós é importante separar a questão artística e musical da forma como lidamos com a venda de nosso de trabalho ou com a exposição da obra. A nossa proposta tem de ser coerente, independente da forma como a música será consumida."
Coerência que é uma das características marcantes do Nenhum de Nós, que teve megahits nos anos 80 com "Camila" e "Astronauta de Mármore", entre outros.
Possivelmente é uma das explicações para a longevidade do grupo e da lealdade dos fãs. Até por conta do conteúdo das letras e pela sofisticação (ou seria elegância?), digamos assim, dos arranjos, o grupo demonstrou bem cedo qual seria a orientação artística a ser seguida. Não dá para ignorar o mercado, mas não necessariamente ele tem de nortear o trabalho. E este é um orgulho que Corrêa demonstra ao falar dos relançamentos e da trajetória do grupo.
"Desde sempre ficou claro que o foco no público e no fã era o caminho a seguir. Estabelecendo uma base sólida de espectadores e ouvintes conseguimos o suporte para encarar os mais de 30 anos de estrada. Há diferentes modos de encarar o sucesso e o 'fazer sucesso'. Essa questão nunca foi o essencial para nós."
Uma postura que só reforça a credibilidade de artistas que souberam se manter íntegros diante das intenças revoluções musicais dos últimos tempos – algo que é comum a grandes bandas que se mantiveram em alto nível desde os anos 80. E isso inclui se posicionar de forma política em relação a temas que afetam diretamete a classe artística.
Thedy Corrêa é um artista que gosta de ouvir e saber o que outros pensam, como é possível checar em seus perfis nas redes sociais. É uma pessoa que tem necessidade de informação, até para manter o próprio trabalho relevante, mas sobretudo precisa de informação para saber trabalhar com essa informação.
Por isso tem sido tão crítico em relação aos constantes ataques – ou intenção de ataques – a instituições como o Sistema S e ao ensino superior de forma geral, mas sobretudo no que tange ao que pode afetar diretamente o mercado artístico.
"Os cortes planejados pelo governo federal em áreas como cultura e educação são muito preocupantes, coisa de quem não dá valor ou não sabe o valor do que isso representa", afirma o músico. "Se houver realmente redução de verbas para o Sistema S, será um crime contra o país."
Ele menciona a importância que o Sesc tem no país inteiro como fomentador de eventos culturais, como as centenas de feiras literárias anuais no Rio Grande do Sul, os festivais musicais por todo o país e o próprio incentivo à educação por meio de eventos artísticos.
Diante desse panorama sombrio, Corrêa não aliviou para os colegas artistas que parecem não perceber o que está em jogo. "A questão político-ideológica é secundária quando discutimos uma eventual destruição de sistemas de estímulo a events culturais e artísticos. E, lamentavelmente, tenho visto quase nenhuma manifestação de músicos de primeiro escalão a esse respeito. Vejo um torpor, um comodismo, um comportamento quase catártico diante do panorama preocupante. Acho que o mundo do rock e o mundo das artes precisa se manifestar mais para que não percamos importantes conquistas diante de políticas lesivas levadas a cabo por pessoas que têm deficiência de formação e que não entendem a importância da arte e da cultura para a formção educacional dos cidadãos."
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