O rock nacional parece não se importar com a liberdade de expressão
Marcelo Moreira
"A democracia e a liberdade só existe enquanto os militares quiserem." Mais uma vez o presidente Jair Bolsonaro surpreende aqueles que acham que ele não pode descer mais baixo do que já desceu. Pode, e vai descer ainda mais, até o último subsolo para cavar ainda mais.
A absurda e asquerosa frase – que também é preocupante – foi dita em um evento para fuzileiros navais na manhã de 7 de março. Já se sabia que o presidente não tinha apreço pela democracia e tem ideias de inspiração fascista. No entanto, ele incinerou qualquer tipo de decoro ao explicitar seu desprezo pelo ambiente democrático.
Com os constantes atentados contra a liberdade de expressão e as liberdades democráticas, é chocante e ensurdecedor o silêncio do rock e do metal brasileiros diante de um ambiente assustador.
Não é à toa que o carnaval e o samba se tornaram as vozes da contestação e da oposição ao status quo bolsonarista-conservador, a ponto de incomodar os filhos do presidente, as seitas evangélicas e todo o lodo que apoia as ideias medievais e lesivas ao interesse público no geral.
Enquanto o rock silencia, o samba de carnaval nada de braçadas com mensagens importantes nas exibições de escolas de samba como Mangueira, Vai-Vai, Mancha Verde e Gaviões da Fiel.
"O samba e o rap são de periferia, de gente pobre e que sofre. Rock é e sempre foi de classe média. No Brasil é conservador por natureza", ousou dizer recentemente a mim um sociólogo que estuda as relações entre arte e política a partir da ditadura militar. Seu nome será preservado porque a declaração foi dita informalmente em uma mesa de bar, numa conversa bacana com muitos amigos presentes.
A classe média até pode predominar dentro do rock desde os anos 80, mas isso não significa que o protesto político e social passa longe do gênero.
O que dizer das bandas punks paulistas? João Gordo (Ratos de Porão) e Clemente Nascimento (Inocentes) são da periferia.
Plebe Rude e Capital Inicial são bandas de Brasília integradas por filhos de diplomatas e altos funcionários do governo federal e nem por isso deixaram de pegar pesado nos anos 80 – "Até Quando Esperar" é um a porrada no queixo.
"Alagados", dos Paralamas do Sucesso, apesar de seu ritmo dançante, é outro exemplo de pancada crítica ao bater na desigualdade econômica e social obscena que sempre predominou no país. E o que dizer de "Inútil", do Ultraje a Rigor, com sua precisão cirúrgica e que segue atual?
Mais recentemente, coube a bandas que fazem misturas sonoras a crítica social mais contundente – Detonautas Roque Clube, Planet Hemp, Marcelo D2, Marcelo Yuka, O Rappa…
No thrash metal e no hardcore paulistas é possível encontrar a ira de muitos artistas, mas que se manifestam de forma genérica, como Project46, Worst, Oitão e mais um punhado de celerados. Convenhamos, é muito pouco.
Coincidentemente, na medida em que o carnaval e o samba se tornam mais críticos e contundentes, a reação da Polícia Militar e do conservadorismo vem no mesmo tom.
Blocos de carnaval são reprimidos e rechaçados com bombas e golpes de cassetete em São Paulo, enquanto a Mangueira, campeã no Rio de Janeiro, e a Vai-Vai, rebaixada em São Paulo, sofrem pesados ataques por dar voz às minorias políticas, como negros, índios e pobres.
Por isso temos de saudar e celebrar a existência de uma obra extraordinária e de estofo lançada no finalzinho de 2017 e que teve repercussão menor do que deveria ter.
"Canudos", o último álbum da Dorsal Atlântica, conta a história épica da batalha ocorrida no sertão da Bahia no final do século XIX e brilhantemente narrada por Euclides da Cunha no livro "Os Sertões".
Carlos Lopes, o guitarrista e cantor que compôs a obra, fez vários paralelos com a atualidade e foi muito feliz ao descrever a repressão histórica a que são submetidos os movimentos sociais (por mais que se possa questionar as origens e motivações do movimento liderado pelo místico Antonio Conselheiro).
É a única obra de cunho político-social e de protesto, de relevância, a ser produzida recentemente no rock nacional. Nas redes sociais, Lopes é um dos poucos artistas a questionarem abertamente a derrocada política brasileira e a guinada perigosa à direita.
Enquanto Bolsonaro diz que a liberdade só é possível por conta de uma "concessão" das Forças Armadas, o samba e os blocos de carnaval vão direto na ferida e escancaram a bizarrice das ações de um governo perdido, mas com aspirações autoritárias.
É bacana ouvir a idealização do mundo celta na música do Tuatha de Danann, os perrengues do dia a dia retratados nas canções do Javali ou impacto que a tecnologia tem em nossas vidas cantado por Pitty – para não falar nas devastações e destruições narradas nas letras das banda de thrash e death metal. Mas o rock está devendo um posicionamento mais firme e explícito diante de questões cruciais.
Defender os direitos humanos e a liberdade de expressão, de opinião, de imprensa e política é um ato que transcende qualquer espectro ideológico.
Defender a liberdade de expressão é fundamental para que o rock e as artes continuem a existir e florescer. Críticas são necessárias, principalmente no caso da campeã Mangueira, mas desde que desprovidas de ódio e preconceito. Quando isso ocorre, a democracia e a liberdade de expressão ficam mais frágeis. Lamentavelmente, o rock parece não se importar com isso.
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