Um chute no futuro que atinge em cheio a música e as artes
Marcelo Moreira
"Não tive como reagir diante da agressão. Os dois caras chutaram meu amplificador, riram e mandaram procurar um emprego quando disse que votava em Bolsonaro."
O desalento surgiu nas redes sociais na última terça-feira (23). Preferindo o anonimato e usando o perfil de um amigo, o baixista S., de uma banda de rock que toca na avenida Paulista aos domingos, mostrou claramente como a sociedade brasileira está sob a ameaça do autoritarismo.
S. toca com sua banda de rock clássico em quase todos os domingos dentro do projeto Ruas Abertas. Sem se dar conta das manifestações programadas para o domingo 21 de outubro, ele e muitos outros músicos de rua foram assolados pela onda verde amarela de apoiadores do candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Muitos dos músicos costumam chegar às 8h para encontrar o melhor lugar para instalar os equipamentos. Só que os bolsonaristas chegaram primeiro e começaram a ocupar toda a avenida, inclusive com o posicionamento de seis caminhões de som/trios elétricos.
Por desinformação, os músicos foram surpreendidos, mas acreditaram que poderiam tocar no local, ao menos por um tempo. Estavam errados.
São fartos os relatos de truculência e ameaças contra os artistas de todos os matizes e áreas. S., até então bolsonarista convicto e antipetista, ficou horrorizado diante do comportamento do que chamou de "tropa de choque" do PSL.
"Odeio o PT e jamais votaria, mas antes de mais nada sou músico e ser humano. Vários colegas que tocam comigo na avenida pensam diferente de mim, mas o respeito prevalece. Por isso fiquei assustado com a abordagem que os caras do PSL fizeram a nós. Sem autorização, tomaram o nosso espaço e arrastaram os equipamentos sem cuidado. Eu reclamei e pedi respeito, afirmando que votaria em Bolsonaro. Riram na minha cara e disseram: 'Então vá procurar um emprego!' Fui chamado de vagabundo depois de agredido", disse S. ao Combate Rock.
Em uma nota sucinta, o diretório paulista do PSL informou que desconhece tal ocorrência e que não incentiva esse tipo de comportamento. A campanha de Bolsonaro não respondeu à solicitação de informações.
Em seu perfil no Facebook, o guitarrista de blues Filippe Dias, que toca todo final de semana na avenida Paulista, narra como foi chegar de manhã e encontrar o começo da tomada do local pelos bolsonaristas.
Não houve agressão, mas Dias relata o clima pesado e diferente naquele domingo 21 de outubro. Ele e seu trio nem montaram o equipamento. Diante da massiva manifestação bolsonarista, recuou e foi embora. Um dia mais triste para a avenida que já se acostumou ao blues de Dias, substituído por música altíssima de gosto duvidoso tocada para apoiar um candidato de extrema-direita que elogia torturador e fala e prender os "vermelhos" que não quiserem partir para o exílio.
S. ficou abalado, mas ainda não ao ponto de mudar o voto. Mas reconhece que começa a entender os medos de quem acusa Bolsonaro de fascista e intolerante.
"Nunca fui chamado de vagabundo por ser músico. Nunca foi agredido por ser músico. Não faz sentido a ameaça e a agressão que sofri. Tenho muitas críticas à esquerda e aos integrantes da esquerda, mas jamais os acusei de vagabundos por não concordarem comigo. Aliás, muitos ralam duro como eu. É injusto. E perigoso", finaliza o baixista.
O escritor George Orwell (1903-1950), autor dos fundamentais "1984" e "A Revolução dos Bichos", dizia que o autoritarismo fascista e o totalitarismo não poupam ninguém e quase sempre se voltam contra os apoiadores e patrocinadores.
O músico bolsonarista aprendeu isso da pior forma possível e não conseguiu disfarçar a apreensão quando ao futuro político do mundo artístico no caso de uma vitória de Bolsonaro.
"As portas do inferno foram abertas e pagaremos bem, caro por isso", lamentei, em tom de desabafo, ao final de nossa conversa. Ganhei de S. um longo e profundo silêncio, encerrado por suspiro de desalento…
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