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Um giro inesquecível por Chicago, a grande capital do blues

Combate Rock

25/09/2016 10h21

Da equipe Combate Rock

O Combate Rock já publicou recentemente uma entrevista com Bruce Iglauer, o grande mentor da maravilhosa Alligator Records, um dos grandes portos do blues mundial, que completa 45 anos. A entrevista foi publicada originalmente no blog Mannish Blog e foi conduzida por seu editor, Eugênio Martins Jr, em 2011, que gentilmente autorizou a republicação. Em uma série de textos complementares, o Combate Rock traz mais algumas das histórias que Iglauer contou sobre os grandes momentos do selo/gravadora. No texto abaixo, ele conta como conheceu e se ligou ao mestre Hound Dog Taylor.

Bruce Iglauer, da Alligator Records 9FOTO: ARQUIVO PESSOAL)

Bruce Iglauer, da Alligator Records 9FOTO: ARQUIVO PESSOAL)

"A primeira vez que vim a Chicago para ouvir blues foi na primavera de 1969. Tinha apenas uma conexão que era a Jazz Record Mart, a loja dirigida por Bob Koester da Delmark Records. Eu estava na faculdade, cerca de 200 milhas ao norte, no Wisconsin. Vim atrás da informação sobre como contratrar uma banda de blues para tocar na minha faculdade em setembro daquele ano.

Estava lá principalmente por ter ouvido falar muito sobre o Chicago Blues e para entender e sentir a música em seu ambiente e não apenas nos discos. Havia descoberto o blues como um fã de música folk e havia me tornado mais e mais viciado em música, tendo inclusive apresentado um programa de blues na rádio da faculdade.

Era os anos 60 e eu era um estudante típico, cabelos compridos, barbado, muito crítico sobre a política e a guerra do Vietnam e ávido por explorar todas as alternativas culturais, incluindo a cultura afro-americana.

Havia crescido em segurança em um daqueles subúrbios brancos de Cincinnati e frequentava uma pequena faculdade onde quase todos eram brancos. Então a América negra era praticamente um país estrangeiro para mim e era (e ainda é) para a maioria das pessoas brancas daqui.

Havia lido sobre a Jazz Record Mart em uma revista folk alguns anos antes. Lembro-me de ter chegado à loja e ter achado muito pequena, com uma fachada sombria em uma área obscura do centro de Chicago. Parecia um lugar que quase nunca tinha sido limpo. Os compartimentos dos LPs e dos discos de 78 RPMs eram totalmente gastos e quebrados.

As paredes eram de um verde antigo, como costumávamos ver nas cafeterias das antigas escolas e a tinta estava descascando das paredes. E enquanto ela descascava, o pó se acumulava entre ela e a parede. Mas atrás da caixa registradora havia vários pedaços de papel. Um deles estava rasgado e escrito à mão: Earl Hooker no Pepper's Lounge toda terça-feira. Os outros eram anúncios em impressões baratas do tipo: Magic Sam no Tom's Musicians Lounge.

Naquele tempo não havia clubes de blues em vizinhanças brancas, todos eram nos grandes guetos negros, South Side e West Side. Havia também o North Side, onde a cena de blues crescia por causa do boom da música folk.

Quando Muddy Waters, Howlin' Wolf e alguns outros tocavam em clubes como o Mother Blues e Big John's juntos com Paul Butterfield and The Siegel-Schwall Band, mas isso acabou em 1969 e o blues retornou exclusivamente às vizinhanças negras.

Nenhuma dessas apresentações apareceram nos jornais ou foram anunciadas nas rádios de orientação branca. A palavra da comunidade negra estava abaixo da captação da grande mídia. The Jazz Record Mart era como a porta mágica para o universo paralelo bem aqui no meu próprio país.

Quando cheguei à loja, reconheci o nome de Bob Koester, o chefe. Ele tornou-se meu mentor e permanece como o meu herói em vida. Conheci-o no primeiro dia – cabelos negros e grossos , um homem com muita energia e carismático, muito falante e cheio de informações sobre o blues e o jazz, com muitas opiniões e certo de si.

Ele percebeu que eu era um estudante e começou a me "dar aulas" sobre o blues. Eu estava fascinado por aquele homem, ele não parecia com ninguém que eu havia conhecido antes. Mas ele não iria aos clubes naquela noite. Tornei-me seu funcionário assim como outro universitário chamado John Fishel. Ele estava planejando um festival de blues em Ann Harbor, Michigan, cidade onde estudava.

O festival foi realizado no verão de 1969 e foi o primeiro e famoso e maravilhoso Ann Harbor Blues Festival. Realmente o primeiro festival nacional de blues. John está quase esquecido, mas é um nome essencial ao "Blues revival". E claro, muito do seu conhecimento veio de Bob Koester, outra figura essencial para na história do blues.

Assim como eu, John tinha cabelo comprido e barba e era um cara muito caloroso. Ele se ofereceu para me levar ao West Side de ônibus, pois não tinha carro.

Ouvira dizer de como os clubes do gueto eram perigosos, mas estava morrendo de vontade de ir, mesmo que isso significasse o risco de morrer de verdade. Depois de a loja fechar, pegamos o ônibus juntos e fomos pela Madison Street, direto ao lado oeste da cidade. Logo éramos os únicos brancos naquele ônibus e começaram nos olhar, mas não houve nenhum problema.

Rodamos o que pareceu uns 30 ou 40 minutos. Ao longo do caminho os prédios ficavam mais e mais detonados. A maioria deles tinham pequenas lojas na frente, algumas igrejas, lojas de bebidas, de roupas e um monte de bares.

As janelas eram a prova de arrombamento e um monte de lojas estavam fechadas e escuras. Entre elas haviam prédios de apartamentos assustadores. E havia muitos terrenos vazios cheios de mato e cobertos de lixo.

No mesmo lugar onde ficavam os prédios dos tumultos de 1968 após o assassinato de Martin Luther King, quando muito do West Side foi queimado pelos próprios moradores. A maioria das lojas e apartamentos foram queimados porque os proprietários eram brancos e iam para as suas casas de subúrbio após coletar o aluguel daqueles prédios deteriorados. Um fato que a mídia ignora quando escreve sobre a violência entre os negros.

Finalmente chegamos no 4400 quadra da West Madison e entramos em um prédio baixo. Havia duas fachadas de lojas e um muro caído entre elas, com o bar à direita e uma sala para show com velhas mesas de fórmica antigas e cadeiras cromadas e tubulares (como os restaurantes dos anos 50) à esquerda.

Atrás do balcão ficava o dono, Eddie Shaw, o conhecido sax tenor que tocava com Ike Turner e gravava com vários bluesmen do West Side. Ele estava para se tornar o lider da banda de Howlin' Wolf, mas naquele momento Eddie administrava esse pequeno clube e havia uma jam acontecendo lá. John e Eddie saudaram um ao outro e apesar de sermos os único brancos naquele clube, todos pareciam relaxados e amistosos.

Alligator-Records_40th-cover

Nós pedíamos cerveja e ouvíamos a banda que era liderada por um baterista chamado Little Adison com participação de um cantor e guitarrista chamado Boston Blackie, apelidado depois do famoso filme de detetive dos anos 40. Vários artistas iam lá, inclusive o maravilhoso Otis Rush com seu grande cabelo estilo Pompadour e sua guitarra vermelha Epiphone. Ele parecia e soava exatamente como seus discos enquanto a banda ficava perdida.

Então um homem alto e magro com uma expressão canina, grandes dentes e um sorriso foi chamado para o palco (não havia palco, a banda estava no chão, junto às abuas detonadas). Ouvi o chamarem de Hound Dog Taylor. Ele plugou sua guitarra barata e se sentou para tocar.

Primeiro acendeu um cigarro Pall Mall e deu uma tragada, depois colocou na base do pedestal do microfone. Então ele começou a contar uma história engraçada.

Seu sotaque sulista era muito forte e sua voz era alta, mas eu não conseguia entender o que estava dizendo. Mas ele estava se achando engraçado e cacarejava de rir. E cobria a boca com a mão de tanto rir. Quando ele terminou a história (eu ainda estava totalmente confuso sobre o que estava dizendo), ele colocou um slide de aço no dedo mindinho da mão direita.

Eu não percebi que ele estava colocando-o no quinto de seus seis dedos. Ele começou com um boogie rápido. A banda tentou encontrar a batida, tropeçava musicalmente e, rapidamente, toda a música se desfez e ele acenou-lhes para parar de tocar.

Então ele deu outra tragada no cigarro, contou outra piada incompreensível, e, ainda rindo, começou outra canção que se desfez tão rápido quanto. Mas ninguém se importava. É evidente que todos pensavam que Hound Dog era engraçado e adorável. Eu decidi que ele não era um bluesman sério e sim um cara que todo mundo gostava e deixava tocar algumas músicas em uma noite de jam como aquela.

Rapidamente ele desistiu de tentar entrar em sincronia com a banda e deixou o palco para voltar ao bar. Deletei-o de minha mente. Era mais uma piada do que um músico de verdade. Eu estava tão errado! Não tinha idéia de que ele seria o primeiro artista de uma gravadora nova e minha inspiração para gravar a "Genuine Houserockin Music".

Depois dessa emocionante viagem em busca do blues de Chicago, em 1969, me mudei para cá definitivamente em janeiro de 1970. Baseado no sucesso de um concerto de Luther Allison, que promovi na minha faculdade, convenci Bob Koester a me contratar como o secretário de transporte para Delmark Records com o salário principesco de 30 dólares por semana.

Eu estava incrivelmente animado para trabalhar para o meu herói Bob, e, claro, no ápice de blues de Chicago. Artistas da Delmark e artistas que queriam ser contratados pela Delmark vinham através da Jazz Record Mart quase todos os dias. Delmark era em um porão e eu tive a oportunidade de conhecer quase todas eles.

Quase toda noite eu estava nos bares de blues no South Side ou West Side, imerso na música e enrolando com uma cerveja a noite inteira (era tudo o que eu podia pagar). Dentro de algumas semanas fui atrás de Hound Dog Taylor no famoso clube chamado Theresa's. Ele me disse que tinha uma apresentação no domingo a tarde no Florence Lounge, na 54 º Place and Shields, no South Side.

Como eu não sabia de nenhum outro show no domingo à tarde, resolvi dar uma olhada, mas não tinha grandes expectativas sobre ele, pois ainda o achava uma espécie de bufão.

Florence era apenas um bar da classe trabalhadora como tantos em Chicago. Tinha provavelmente 25 pés de largura e 80 metros de comprimento. Ocupava sozinho um prédio de tijolos de dois andares no meio de uma rua residencial muito pobre com casas caindo aos pedaços.

Pessoas se amontoavam do lado de fora com as garrafas de bebida dentro de sacos de papel e ficavam em pé ao lado de um caminhão de comida barata que vendia sanduíches de orelha de porco.

Hound Dog Taylor (FOTO: ACERVO ALLIGATOR)

Hound Dog Taylor (FOTO: ACERVO ALLIGATOR)

No interior, um balcão de parede a parede com cadeiras de plástico vermelho rasgado cheios de remendo com fitas prateadas. No fundo uma uma pequena área onde normalmente havia algumas mesas. Os quadros haviam sido colocados para trás, onde estava Hound Dog Taylor e os Houserockers.

Hound Dog estava sentado em uma cadeira dobrável, com a cabeça jogada para trás batendo os pés e derramando notas lancinantes, uma lâmina de aço no quinto de seus seis dedos, tocando sua guitarra barata da marca japonesa Kingston (isso foi antes de "made in Japan", tornou-se uma marca de qualidade).

No centro estava Ted Harvey, batendo em um antigo conjunto de tambores Slingerland, também em uma cadeira dobrável (descobri mais tarde que ele poderia cair a qualquer momento). Ele tinha um chiclete na boca, seus olhos estavam fechados, e ele estava batendo um shuffle elementar, usando apenas o tarol, bumbo e um prato.

Brewer Phillips estava tocando sua antiga Fender Telecaster, sorrindo com os dentes quebrados, sua camisa pendurada para fora, criando linhas de baixo em constante mudança.

A batida era desconcertante, assim como o sorriso de Hound Dog e a energia eram inacreditáveis. Muitos dos clientes estavam dançando no corredor e na pequena área em frente ao coreto, alguns ainda vestindo seus belos ternos e vestidos da igreja naquela manhã.

A música era cheia de alegria, de eletricidade e energia primal. Hound Dog cantando era o mais puro e verdadeiro blues, sem rodeios e com alma. Mesmo as canções lentas tinha uma unidade rítmica. Era uma música muito simples, cheia de folhas de distorção do amplificador, e muito cru. Foi a música mais feliz e que eu não tinha ideia que existia.

Eles tocaram durante quase três horas seguidas, sem intervalo. A música nunca parou, exceto quando Hound Dog disse uma de suas piadas impossíveis de entender, acendeu um Pall Mall e em seguida começou uma outra canção.

Deixei o clube descontroladamente eufórico, sentindo que acabara de estar em um lugar mágico onde o verdadeiro blues acontecia, assim como em uma juke ordinária do Mississippi.

Não tenho certeza se eu era a única pessoa branca ali naquele dia, mas sabia que esse era realmente um verdadeiro clube de blues negro, o tipo de lugar secreto que eu sonhei quando cheguei a Chicago, não divulgado, desconhecido, exceto para os fodões locais. A música poderia ter sido facilmente tocada em algumas jukes naquelas estradinhas que levam de volta ao Mississippi."

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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