Sequência para 'Quadrophenia', um projeto desnecessário para The Who

Marcelo Moreira

A cena é icônica no cinema inglês: o mod Jimmy, desiludido com a família, os amigos e a quase namorada, decide quebrar o ciclo de frustrações e atira sua lambreta em um penhasco no litoral de Brighton, no sul da Inglaterra.

Era o fim de uma era, e a sinalização de um recomeço com o jovem indo embora, sme destino, pela praia. "Quadrophenia", o filme baseado na obra homônima da banda The Who, virou cult, embora as críticas tenham sido pesadas quando foi lançado, em 1979.

Hoje a fita é idolatrada por uma legião de fãs que cresce a cada dia, e começa a ser reavaliado por críticos e mesmo músicos atraídos pela força das canções originais do LP duplo lançado pela banda inglesa em 1973. Em 2004, a revista "Total Film" elegeu "Quadrophenia" o 35º melhor filme britânico de todos os tempos.

Na semana passada houve o anúncio de que haverá uma continuação de "Quadrophenia" em 2017. Não é uma boa notícia. Embora detalhes do roteiro não tenham sido divulgados, a informação causou apreensão: é realmente necessária uma continuação?

É normal que sequências de filmes clássicos, cults ou campeões de bilheteria sejam esperados com ansiedade, já que não são poucos os exemplos de desastres. E o que dizer então de inventar uma sequência de um filme cult de 37 anos depois?

O risco é bem grande. Na música, por exemplo, o cantor e flautista escocês Ian Anderson, decidiu marcar os 40 anos do lançamento de uma obra-prima do Jethro Tull, "Thick as a Brick" com uma sequência.

A ideia era absurda, e piorou mais ainda quando Anderson lançou a segunda parte como um álbum solo. A obra, lançada em 2013, não era ruim, mas completamente desnecessária. Passou despercebida.

Revival

As primeiras informações sobre o filme "Quadrophenia 2" dão conta de que Jimmy original, o ator Phil Daniels, voltará ao papel, retratando o mesmo personagem, ainda amargurado. Onde encaixá-lo em um roteiro que vai se passar quase 40 anos depois.

"Quadrophenia" parece ser uma obsessão para o Who. Melhos, mais complexa e densa do que a outra obra-prima da banda, "Tommy", de 1969, foi lançado em álbum duplo em 1973 com músicas só do guitarrista Pete Townshend, o único da banda só com músicas dele.

Praticamente irreprodutível ao vivo, a turnê teve muitos problemas por conta dos muitos detalhes e a banda praticamente abandonou as músicas ao vivo – só "Love Reign O'er Me", de vez em quando, era executada.

Os atores Phil Daniels e Toyah Wilcox em cena do filme (FOTO: REPRODUÇÃO)

Quando a banda decidiu voltar de vez, em 1996 (em 1989 houve uma turnê comemorativa dos 20 anos de "Tommy", mas que teminou em 1990 sem indicar que eles continuariam), arriscaram e resolveram tocar "Quadrophenia" quase na íntegra, tendo como convidado em alguns shows David Gilmour, do Pink Floyd.

A turnê foi um enorme sucesso, tanto que 16 anos depois a ideia foi retomada, desta vez executando na íntegra o difícil álbum com uma afiada banda de apoio. O sucesso do Who foi maior ainda.

Salvação

O que pouca gente sabe é que é o filme foi um pesadelo para a banda e para a produção, mas acabou sendo a redenção e a salvação do Who, que retomou o rumo da carreira por mais quase cinco anos e reaproximou pema enésima vez Townshend, Daltrey e Entwistle.

Roger Daltrey, o vocalista, tinha fama de explosivo e encrenqueiro, mas adorava Townshend, só que se ressentia por mais espaço na criação e nas decisões da banda. Tinha uma carreira cinematográfica em ascensão na época e queria a todo custo participar do filme.

Townshend, no entanto, preferia que a fita tivesse vida própria, com o envolvimento da banda somente na parte musical. Daltrey, Townshend e John Entwistle divergiram bastante sobre quase tudo, da escolha do atores às locações.

A coisa piorou muito quando o baterista Keith Moon, um dos três melhores do rock, morreu em setembro de 1978, aos 31 anos, vitima de overdose de remédios contra o alcoolismo. O projeto, ainda no início, acabou paralisando por um bom tempo.

As divergências continuaram, mas Townshend ganhou quase todas as paradas, com o apoio do novo empresário da banda, o experiente e competente Bill Curbishley, que mais tarde também trabalharia para Jimmy Page, Robert Plant e Judas Priest.

Sting à frente de uma legião de mods (FOTO: REPRODUÇÃO)

A escolha do diretor foi um parto, pois a ideia era pegar alguém jovem e "sem vícios". O escolhido foi Franc Roddam, estreante na função. Phil Daniels, como Jimmy, foi uma escolha mais fácil, e o ator fez um trabalho muito bom, mergulhando de forma competente no personagem.

O cantor e baixista Sting, do Police, como um amigo/rival de Jimmy, não comprometeu, assim como a principal personagem feminina, a namorada protagonista, interpretada por Toyah Cox, que está cotada para a nova versão do filme.

A fita consegue retratar com relativa fidelidade a juventude de Londres e Brighton entre 1964 e 1965. Morando na capital inglesa, Jimmy Cooper é um membro de uma gangue mod – jovens bem vestidos que dirigem vespas Lambretta. Os mods estão sempre brigando com os rockers, que vestem jaquetas de couro e dirigem motocicletas.

Desiludido com seus pais e seu emprego, Jimmy só encontra uma válvula de escape para sua angústia adolescente quando está com seus amigos mods Dave, Chalky e Spider.

Um feriado de três dias é a desculpa para a rivalidade entre as duas gangues chegar às vias de fato, enquanto ambas descem para a cidade litorânea de Brighton para o confronto definitivo.

Novas músicas

Por conta das divergências entre os três músicos remanescentes, Pete Townshend tomou para si o fato de tomar conta da trilha sonora e compor três músicas a mais para o filme. Foi obrigado a cantar duas delas – "Get Out and Stay Out" e "Four Faces". Meio a contragosto, Roger Daltrey cantou "Joker James".

As músicas forma creditadas a The Who, mas Townshend tocou praticamente todos os instrumentos, com participações não tão efetivas de Entwistle – com o clima mais ameno, este passou a se envolver mais com toda a produção, assinado a direção musical do filme e da trilha sonora lançada em LP duplo.

Nenhum dos integrantes admite, mas, nos bastidores, colaboradores próximos não têm dúvida: a banda que quase implodiu com a morte de Moon renasceu por conta de um projeto bastante arriscado, mas que deu fôlego aos três integrantes para se reagruparem e continuarem juntos por mais 23 anos – Entwistle morreu em Las Vegas em 2002, às vésperas do início de uma turnê.

"Quadrophenia", o filme original, foi relançado em DVD e Blu-Ray em 2012.