O uivo do lobo solitário Edvaldo Santana nas noites de isolamento
Combate Rock
28/06/2020 06h56
Eugênio Martins Júnior – do blog Mannish Blog
Letras que nos levam aos campos floridos do interior do país (Jataí) ou aos campos de futebol, tema recorrente de suas histórias. Mas também a lugares sombrios, onde habitam os exploradores da fé e do erário público ("O mandatário perguntou quanto é que eu custo…").
É blues, soul, sampa e protesto. Guitarra de corda de aço e gaita diatônica lado a lado com a viola caipira, o violão de náilon e a sanfona. A música de Edvaldo Santana é o amálgama de tudo isso.
Não adianta esse cara aí do poder querer nos tutelar. É ouvindo Jacob do Bandolim, Pixinguinha e Edvaldo Santana que reforçamos e reafirmamos quem somos: brasileiros.
E se a gente quer fumar um beck, a gente fuma. Se quiser tomar uma pinga a gente toma: ("Um beck, uma pinga, Jacob e Pixinga").Versos abusados de quem é nascido e criado na maior cidade do Brasil, ouviu e viveu suas histórias desde jovem, lá na perifa, em São Miguel. Edvaldo Santana é de São Paulo.
A amizade com Tom Zé o aproximou nos anos 70 ao maior número de malucos beleza por metro quadrado do país. Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Eliete Negreiros, Vânia Bastos, Ná Ozzétti e os grupos Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Patife Band. Artistas geniais e fora de qualquer enquadro.
Como uma enxurrada de verão descendo a rua Teodoro Sampaio, e quem já foi pego em cheio por uma dessas sabe do que eu estou falando, a "vanguarda paulista" apareceu arrastando tudo o que via pelo caminho até parar no teatro Lira Paulistana, onde fez abrigo. Assim como no Sesc Pompéia, que mais tarde também seria o refúgio das bandas punks de São Paulo.
As grandes TVs não deram muita bola para o "movimento". Conheci todos esses caras, inclusive o Edvaldo, por causa da TV Cultura de São Paulo, já nos anos 80.
Após participar de algumas coletâneas independentes, o álbum Lobo Solitário, primeiro solo de Edvaldo Santana, lançado em 1993 pelo selo Camerati, tornou-se um marco na carreira do bardo e da discografia nacional.
Bons blues como a faixa título, com uma slide insistente, o blues dançante Consulta ("quem não tem suingue não tem nada"); Muito Prazer, um slow da pesada e outros. Além das parcerias com Tom zè, Paulo Leminski e Arnaldo Antunes.
Ao londo das décadas 1990/2000, Edvaldo vem gravando discos independentes que descrevem dois lados do mesmo Brasil, o de beleza calma e bucólica do interior e o da tumultuada e angustiante vida urbana: "Tá Assustado?" (1995), "Edvaldo Santana" (1999), "Amor de Periferia" (2003), "Reserva da Alegria" (2006), "Jataí" (2012) e "Só Vou Chegar Mais Tarde" (2016).
Eugênio Martins Júnior – Como foi a tua infância musical?
Edvaldo Santana – Nasci e fui criado num bairro chamado São Miguel Paulista, periferia zona leste de São Paulo, filho de pais nordestinos que vieram como a maioria dos migrantes tentar mudar a vida na grande metrópole paulistana. Minha infância foi muito interessante pra formação musical, meu pai cantava e tocava violão com os amigos em casa nas horas de folga e gostava de ouvir Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Pixinguinha, Waldir Azevedo, também trazia os livretos de literatura de cordel que ele adorava. A influência da música brasileira foi fundamental, naquele momento, nos anos 60. No radio você ouvia de tudo, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Teixeirinha, Caetano Veloso, Altemar Dutra, Tonico e Tinoco, entre outros. A televisão estava começando e a música popular era seu carro chefe. Programas como O Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues; Show em Simonal, Jovem Guarda, Tropicalia, os Festivais de Música, que possibilitavam ao público conhecer a diversidade e a beleza da nossa canção. E ainda tinha o som que vinha de fora, Woodstock, Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Santana, Ray Charles. Posso dizer que fui privilegiado na formação musical, na infância e na pré-adolescência.
EM – E quando começou a tocar profissionalmente?
ES – Em São Miguel Paulista temos um grande artista que se destacou no cenário nacional, o Antonio Marcos. Todo jovem que gostava de música queria ser como ele, artista famoso que cantava na TV e no rádio, com dinheiro, mulheres, carrões, aquela ilusão da maioria do povo na periferia. Logo cedo fui aprendendo a tocar violão como auto-didata, quebrando as cordas do Gianini do meu pai. Cantei em circo, salões de igrejas, na escola formei um grupo para participar de festivais estudantis chamado Caaxió, nessa época, com 15 anos, trabalhava numa fábrica de brinquedos chamada Mimo que ficava entre o Brás e a Mooca, acordava três e meia da manhã, pra chegar as seis no serviço. Comecei a perceber que a vida estava muito difícil e que eu podia, juntamente com os amigos, tentar viver da música que criava. Já havia ganho alguns festivais, coincidentemente o mestre Tom Zé estava precisando de uma banda para acompanhá-lo num show na cidade de Assis (SP). Foi aí que começamos a viver profissionalmente, larguei a escola, a fábrica e fomos fazer uma temporada no teatro de Arena que era dirigido por Luiz Carlos Arutin. Em 1975 fomos contratados pela gravadora Chantecler e o nome da banda virou Matéria Prima, gravamos um LP e em seguida um compacto simples. Já pela CBS, nos apresentamos na TV, nos programas Fantástico, Almoço com as Estrelas, Flávio Cavalcante, entre outros. Com vinte anos já conhecia um pouco da vida de ser artista no jet set, descobri que tudo tinha preço que aquela vida de sonho de ser pop star era apenas uma ilusão, agradeço muito os desenganos, pois entendi que precisava aprender a cantar, tocar, escrever, aprimorar os dons que me foram doados. Era necessário lapidar, depurar aquele diamante bruto pra não me tornar apenas mais um produto descartável na vitrine da indústria cultural. Os sentimentos teriam que prevalecer sobre o mercado. O pato rouco aprendeu que o bagulho é louco, que o jabá existe, e voltou pra São Miguel cantando pro Brasil com humidade e sabedoria. Afinal, a história da nossa música passa por Noel Rosa, Cartola, Raul Seixas, Chico Buarque e voce não pode deixar a peteca cair, tem que manter o alto nível para as gerações que estão chegando entender a importância da música e da arte nas nossas vidas.
EM – Poderia falar sobre o Movimento Popular de Arte que chegou a lançar um disco em 1985, auge do underground paulistano com compositores geniais.
ES – O MPA – Movimento Popular de Arte foi fundado no final de 1978 e teve atividades intensas até o final de 1985. É o primeiro agrupamento de diversos artistas e interessados na cultura, criado na periferia de São Paulo. Entre seus objetivos estavam a criação de espaços no bairro que fossem utilizados na formação de novos artistas, potencializando suas inclinações, assim como a criação de público, proporcionando à população mais pobre, acesso a oficinas, palestras, debates sobre a arte e a vida diária. Assistir a peças de teatro, shows de música, espetáculo de dança, exibição de filmes, sarau de poesia. Investir em lazer e cultura para a periferia era o seu objetivo principal. Durante o tempo que durou, o MPA produziu várias atividades, ocupando praças, ruas, teatros, sindicatos, salões paroquiais. Produziu um documentário para a TV Cultura, gravou um disco LP, uma coletânea que incluía os artistas representativos de sua história, como Matéria Prima, Edvaldo Santana, Sacha Arcanjo, Raberuan, Ceciro Cordeiro, Gildo Passos, Osnofa, Eder Lima, Ligia Regina, Zulu de Arrebatá, Luiz Casé, Grupo Goró. Foi gestor e organizador do MPA Circo que proporcionava cursos e apresentações de artistas consagrados como Belchior, Walter Franco, Inezita Barroso, Língua de Trapo, Tarancón, Paulo Moura. E grupos de teatro como União e Olho Vivo, Núcleo, Periferida. De poetas, como Akira Yamasaki, Claudio Gomes, Severino do Ramo. Grupos de música étnica, como o Crisol. De dança, como o Balé Nacional do Brasil. O Movimento celebrou 40 anos de sua fundação, realizando vários eventos comemorativos no bairro, sua atuação é de muita importância para a formação e desenvolvimento de artistas e pessoas que vivem no extremo leste da cidade, influindo na criação de Casas de Cultura, Oficinas Culturais, Bibliotecas, encurtando a distância entre o conhecimento e a sabedoria, entre a arte e a vida.
Sobre os Autores
Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.
Sobre o Blog
O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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