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Ian Gillan, 75 anos: uma voz que une gerações

Combate Rock

23/06/2020 06h53

Marcelo Moreira

FOTO: IAN GILLAN OFFICIAL SITE/FACEBOOK

O Brasil já estava no circuito internacional de turnês de nomes importantes do rock em 1990, mas ainda havia um certo ressentimento, pois alguns dos grandes heróis ignoravam o país, ainda que fossem veteranos. Nem mesmo o Deep Purple e Black Sabbath capengas daquele tempo se dignavam a tocar por aqui.

Dos grandes nomes do chamado rock pesado (dinossauros), um dos primeiros a pisar por aqui Ian Gillan, em carreira solo. Recém-saído do Deep Purple, causou euforia entre os roqueiros em shows concorridíssimos no mês de agosto no antigo Projeto SP, pertinho da rua da Consolação, em São Paulo.

"Era um mundo novo para todos os artistas que decidiram tocar em outros países. A América do Sul era distante, sabíamos que havia um grande público, mas nunca eu poderia imaginar o tamanho da paixão que existe pelo rock nesta região", comentou o cantor do Purple 15 anos depois, em mais uma passagem com a mítica banda inglesa. "Eu e o Purple demoramos demais para vir."

Coincidência ou não, logo uma enxurrada de craques invadiu o país naquela década – Deep Purple com Joe Lynn Turner nos vocais, Black Sabbath com Dio cantando, Uriah Heep, Nazareth, Rainbow, os retornos de Ozzy Osbourne, Iron Maiden e Kiss…

Os 30 anos da primeira passagem de Ian Gillan pelo Brasil coincide (não seria o contrário?????) com a comemoração de seus 75 anos de vida. São 58 anos de carreira, e ainda com bastante vontade nos palcos, embora a voz não seja mais a mesma – pela potência e pela exímia técnica, nunca teve medo de "esticá-la" para atingir notas impossíveis.

Seja como for, ainda à frente do interminável Deep Purple, o cantor que é chamado de "Silver Voice" faz questão de, a cada entrevista (onde muitas vezes abusa da ironia e do sarcasmo), de deixar claro: ainda tem bastante coisa a dizer.

As conversas sobre parar e se aposentar surgiram há pelo menos dois anos, quando se anunciou que a mais recente turnê mundial seria a última da banda, que decidiria pelo fim das atividades ou tornar-se um grupo de estúdio – quase todos são septuagenários.

Deep Purple nos anos 2010 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Entretanto, os planos parecem ter sido adiados. O próprio Gillan, nas redes sociais, anunciou que a banda fará uma pequena turnê inglesa com o Blue Oyster Cult em outubro e que o novo álbum de inéditas está pronto e deverá ser lançado no primeiro semestre.

"Ainda temos vontade de tocar", disse na mensagem. "Gravamos em Nashville e o nosso produtor, Bob Ezrin, nos convidou para um jantar legal. Perguntei se havia algum motivo para aquilo e ele disse de forma direta: 'Vamos celebrar o fato de ainda estarmos vivos'."

Há maneiras de interpretar essa "celebração" vinda de um produtor que trabalhou com Pink Floyd, Kiss e mais um monte de gente. Conhecido por seus excessos com álcoo e drogas, pode significar que é um sobrevivente.

Para Gillan, no entanto, a questão é outra. É uma dádiva que um gigante como o Deep Purple ainda tenha a pelna capacidade de fazer bom rocn and roll após 53 anos de sua criação.

Começo difícil

Cantor desajeitado nos Javelins e aspirante a astro no Episode Six, estava prestes a entrar em parafuso – assim como ocorreu com futuro parceiro Ritchie Blackmore: "Estou próximo dos 25 anos e ainda não fiz sucesso. Será que meu tempo passou?"

Eram os anos 60, onde a molecada ditava os rumos do rock em todos os subgêneros – é bom lembrar que os Beatles viraram astros mundiais quando tinham entre 22 e 25 anos.

A sorte foi que o guitarrista Blackmore e o tecladista Jon Lord estava patinando naquele ano de 1969 mesmo após três LPs lançados na Europa, sem muito alarde.

Episode Six em 1967: da esq. para a dir., Harvey Shield, Tony Lander, Roger Glover, Sheila Carter, Graham Carter e Ian Gillan (FOTO: DIVULGAÇÃO)

O rock progressivo-psicodélico do quinteto não tinha emplacado, mesmo no auge do subgênero, e então decidiram radicalizar: rock pesado, como faziam Jimi Hendrix, The Who, Cream e uma bandinha estreante chamada Led Zeppelin.

Nick Simper (baixo) e Rod Evans (vocais) pagaram o pato e foram demitidos. E eis então que a sorte sorriu para aquele cantor alto e cabeludo de voz potente, mas que estava empacado no empacado Episode Six. A indicação foi certeira, e Jon Lord dirimiu qualquer dúvida do irascível Blackmore.

"Não havia a menor dúvida de que tinha de ser Gillan e tinha de ser Roger (Glover, também baixista do Episode Six e que acompanhou o cantor ao Purple)", disse o tecladista em uma mesa de bar em São Paulo no início dos anos 2000.

Desde o começo entenderam direitinho o que queríamos e a nossa mudança de rumo. Ritchie semepre foi cauteloso, mas depois viu que era a decisão acertada.

'Salvo' pelo Deep Purple, torna-se astro do rock 

Genioso e generoso, ousado e culto, virtuoso e esperto, Ian Gillan se transformou como cantor de uma banda de primeiro time. Logo chamou a atenção e dividiu as atenções muitas vezes com Robert Plant (Led Zeppelin) e Roger Daltrey (The Who). Tornou-se espelho para toda uma geração de cantores, recebendo a admiração de gente como David Byron (Uriah Heep), Paul Rodgers (Free e Bad Company) e Glenn Hughes (na época, Trapeze)

Alçado a astro internacional do rock, frontman de uma banda fantástica e reconhecido com bom compositor e letrista, Gillan ganhou estofo e finalmente sua forte personalidade aflorou, com méritos, para assumir e incorporar a posição de destaque dentro da banda e do ainda incipiente rock pesado. Pena que havia um Blackmore no caminho.

Segunda formação do Deep Purple (mark II), considerada a clássica: em pé, da esq. para a dir, Ritchie Blackmore (guitarra), Roger Glover (baixo) e Ian Paice (bateria; sentados: Ian Gillan (esq.) e Jon Lord (teclados) (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Após quatro anos, o clima no Deep Purple ficou insuportável. Lord tentava conciliar e mediar, mas essas eram tarefas quase impossíveis diante do competitivo e rabujento guitarrista. Estressadíssimo, Gillan tomou a decisão de sair em 1973. Pior, tomou a decisão de abandonar a música.

Foram quase cinco anos como empresário – primeiro na construção de lanchas, depois como dono de hotel -, até que percebeu que estava na atividade errada, perdendo dinheiro e desperdiçando talento.

A carreira solo surpreendeu muita gente por volta de 1977, com uma mistura de rock progressivo e hard rock. Sem a proteção do Purple, era um dos bons artistas daquele fim de década e garantiu um bom circuito de shows na Inglaterra e na Europa com a Ian Gillan Band e com a banda Gillan.

'Scarabus', talvez o mais conhecido trabaoho da Ian Gillan Band

Carreira solo à míngua, Black Sabbath no horizonte

À perda de fôlego nos anos 80 seguiu-se uma cirurgia na garganta e o fim da banda solo, e eis que, de repente, em 1983, a voz maior do Purple assume os vocais do Black Sabbath. Foram menos de 18 meses loucos e confusos, mas que ele adorou pela camadragem e amizade, mas nem tanto pelos resultados musicais. Só que sempre aparece um Blackmore no caminho.

A formação clássica do Deep Purple, de forma sigilosa e também surpreendente, voltou com tudo em 1984 para cinco anos de sucesso, mas, como sempre nesta história, havia um Blackmore no caminho.

Novas brigas, novas sacanagens, e Gillan sai de novo, para retornar em 1993 na turnê de 25 anos de fundação da banda. Era para ser só uma turnê comemorativa para Gillan, que depois voltaria a cuidar da vida, mas as coisas foram diferentes: desta vez o Blackmore saiu do caminho – o guitarrista brigou de novo com Gillan e exigiu a sua saída, mas não teve apoio. Abandonou a banda durante a perna europeia da turnê, sendo subsstituído às pressas por Joe Satriani.

Nos últimos anos Gillan assumiu para si o papel de imagem do Deep Purple, ainda mais depois da aposentadoria de Jon Lord em 2003. Líder cordato, mas firme, dá as coordenadas da banda com o apoio de Glover e do baterista Ian Paice, o único remanescente da formação original.

"Nunca foi tão fácil trabalhar na banda como nos últimos 20 anos. A tensão sumiu e há muito mais cooperação e participação em todos os aspectos da banda, sejam criativos ou não", revelou o cantor à revista britânica Classic Rock no final da década passada.

Black Sabbath na turnê de 1983/1984: da esq. para a dir., Geezer Butler (baixo), Bev Bevan (bateria), Tony Iommi (guitarra) e Gillan (FOTO: DIVULGAÇÃO)

'Born Again', amado no Brasil, desprezado pelo vocalista

Exigente e detalhista, Ian Gillan tem a capacidade de ser bastante desagradável algumas vezes, mas também costuma ser atencioso e comunicativo. E isso aconteceu em uma das suas inúmeras visitas a São Paulo com o Deep Purple, após uma entrevista coletiva, falando de um assunto que não aprecia – o álbum "Born Again", que gravou com o Black Sabbath.

"O pior disco da minha vida é o mais cultuado no Brasil. Não consigo entender isso." A declaração é de um surpreendentemente bem humorado Ian Gillan em 1997, na entrevista coletiva em um hotel de São Paulo, às vésperas de mais um show do Deep Purple na cidade. Ele não se estendeu muito, pois a pergunta foi feita por um fã quando ele ia para o seu quarto.

Dois dias mais tarde, após a apresentação no antigo Olympia, em um bar rock que já não existe mais, ainda mais bem humorado, Gillan disse que era quase inacreditável que o  álbum tenha  saído como saiu e soltou o verbo contra "Born Again", seu único trabalho com o Black Sabbath, em 1983.

"Tudo estava meio confuso, estava bagunçado, e sei que Tony (Iommi) não trabalhava daquela forma. Mas as coisas estavam esquisitas, Bill (Ward) estava com seus problemas crônicos de saúde, Geezer (Butler) estava muito preocupado com coisas fora da banda. Algumas músicas eram realmente boas, mas a produção é muito ruim, há sons que não faço ideia do que são. Não sei se é o pior de minha carreira, mas não gosto dele. O tempo que passei no Sabbath foi maravilhoso, amo Tony e Geezer, mas o resultado não foi bom. Não entendo porque brasileiros, argentinos, mexicanos e gregos amam esse trabalho", disse o vocalista.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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