Florian Schneider, do Kraftwerk, ajudou a criar um mundo novo na música
Combate Rock
07/05/2020 06h42
Marcelo Moreira
Santos Dumont inventou o avião e se martirizou por perceber que seu invento, que encurtou as distâncias, se transformou em uma arma letal de guerra.
Os músicos alemães do Kraftwerk, em uma analogia tosca, deram origem a toda sorte de música eletrônica e possibilitaram o surgimento dos indefectíveis DJs, boa parte deles meros apertadores de botões e tocadores de pen drive. Será que se martirizariam também?
Não costumo prestar a atenção na música eletrônica de qualquer tipo, mas reconheço que Kraftwerk é um conjunto de músicos que teve importância crucial na música pop ocidental. Dá para dizer que eles criaram um gênero musical. Nada parecido havia antes deles, que surgiram no final da década de 1960.
Florian Schneider, um dos fundadores da banda, morreu nesta quarta-feira, aos 73 anos. Ao lado de músicos/engenheiros/visionários como Karl Hutter e Karl Bartos, sintetizou em sons eletrônicos e/ou artificiais (na visão de alguns) o que seria a música moderna do final do século XX. Estabeleceram novos padrões e criaram paradigmas, ganhando o respeito mundial.
Quase sempre ao lado de Ralf Hutter, foi responsável por obras importantes como "Autobahn" (1974), "Trans Europe Express" (1977) e "The Man Machine" (1978), influenciando vários gêneros, como o hip-hop e o rock.
Multi-instrumentista, Schneider tocava sinterizadores, vocoder, flauta, sax, percussão, violino, guitarra, bateria e ainda fazia vocais para a banda.
O músico deixou o Kraftwerk em 2008, depois de quatro décadas. Flautista de origem, desde cedo começou a mexer com eletrônica e a mudar a sonoridade de seu instrumento, efeitos eletrônicos, ecos, modulações e até wah-wah, transformando numa espécie de baixo.
Modéstia e humildade não eram atributos dos músicos do Kraftwerk, que tinham plena consciência do que estavam criando, embora repudiassem qualquer tentativa de individualização quando o sucesso chegou.
O som mecânico, industrial e "artificial" era uma obra do coletivo, bem de acordo com os ditames da sociedade ocidental moderna que tanto retratavam e criticavam.
Não é de estranhar que muitos de seus fãs, entre eles muitos jornalistas, os consideravam ais revolucionários do que o movimento punk, mais influentes do que os Beatles. Não havia modéstia em relação à importância da banda.
Inovador, mas com reconhecimento aquém do merecido
Apesar de exageradas, há bons argumentos sobre o legado do Kraftwerk e jogam luz a um fato que é quase incontestável: o reconhecimento menor do que o merecido ao quarteto alemão, que pode, sim, ser considerado altamente inovador e bastante revolucionário, já que estabeleceu novos conceitos a respeito de música pop.
Se o Kraftwerk não é o pioneiro da música eletrônica, é certamente o ponto central do gênero, seja como catalisador de influências, seja como difusor de tendências e conceitos – ainda que tenha de conviver com o epíteto de "pai da música eletrônica" ou "maior expoente da música eletrônica de massas", ou de DJs.
Embora a tal da música eletrônica de pistas, a dos DJs, seja consequência direta do trabalho do Kraftwerk, considerar o que os alemães fizeram – e ainda fazem – seja apenas música eletrônica é limitar o escopo de possibilidades abertas pelo grupo.
Descontando a exaltação que por vezes domina certas passagens do livro, o que podemos concluir é que o Kraftwerk sempre foi além da música meramente eletrônica.
Experimental e vanguardista
Mais do que praticamente criar um gênero pop, foi um grupo altamente experimental e de vanguarda, explorando todo tipo de som, transitando com autoridade por todos os segmentos, indo do rock ao experimentalismo de vanguarda baseado na música erudita, passando pelo rock, pelo soul, pelo funk, pelo blues e pelo jazz.
"Kraftwerk Publikation", de David Buckley, livro lançado no Brasil, descortina e desvenda as qualidades da banda de forma a não restringi-la apenas a música artificial feita por computadores e dominada por sons robóticos e feito por máquinas – ainda que, de certa forma, em alguns momentos, os músicos se esforçassem pro reforçar conceitos estéticos ligado a esse estereótipo.
Por todo o livro, Buckley deixa claro que a revolução sonora praticada pelos alemães só foi possível por uma conjuntura de fatores históricos e pela bagagem de cada um dos integrantes da formação clássica – Ralf Hutter, Florian Schneider-Esbelen, Wolfgang Flur e Karl Bartos.
De classe média abastada e sólida formação cultural-acadêmica, surgiram no final dos anos 60 em uma sociedade que foi reconstruída das cinzas da Segunda Guerra Mundial e que ainda sofria influências muito presentes das consequências sociopolíticas do nazismo deformador e psicopata.
O ambiente novo favoreceu o surgimento – ou, pelo menos, estimulou a busca por – de uma cena cultural e artística sedenta por encontrar uma identidade própria e cada vez menos dependente da cena pop norte-americana e britânica.
Gigante da cultura pop, Florian Schneider deu vida a um mundo robótico e que certamente ficaria ainda mais sem vida sem a sua música. Ele e seus companheiros conseguiram traduzir em música esse tal novo mundo que vivia sendo descrito por escritores de ficção científica do século passado. Se não atingiram completamente o objetivo de traduzir como seria esse mundo novo, chegaram bem perto por meio de seus sons e sua música.
Sobre os Autores
Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.
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