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Um retrato de um artista enquanto independente, na visão de Fabiano Negri

Combate Rock

08/04/2020 06h24

Marcelo Moreira

Fabiano Negri (FOTO: DIVULGAÇÃO/DIEGO RODRIGUES)

As crises renovam muitas esperanças, inspiram protestos e obras e rejuvenescem a alma, segundo filósofos e pensadores modernos, especialmente quando se referem à arte. Quantas obras, de todos os calibres, não saíram de mentes e espíritos atormentados por crises pessoais e existenciais?

"The Fool's Path", o novo trabalho do multi-instrumentista e cantor Fabiano Negri, de Campinas (SP) – que tem longa carreira desde os 90, quando integrava a boa banda Rei Lagarto – é um artista que expõe alma em quase todos os seus trabalhos e pode perfeitamente ser incluída no rol de álbuns pungentes e paridos de uma série de crises.

Foi composto e gravado antes do recrudescimento das sucessivas crises político-sociais-econômicas do lamentável (des)governo Jair Bolsonaro, mas isso parece ser apenas um detalhe: parece totalmente inspirado nas crises mais recentes.

Com uma frequência impressionante pra os dias de hoje – raramente fica dois anos sem lançar alguma coisa -, Negri olha bastante para o passado, suga o máximo de referências possíveis e aponta para um futuro onde o classic rock e o hard rock dão as mãos e apontam caminhos alternativos para a próxima década.

O medley das músicas "Voiceless-The Wicked" abre "The Fool's Path" e mais uma vez surpreende vindo de um músico que já flertou com o rock setentista, soul music, o mais genuíno folk acústico, classic rock e blues.

Com seus mais de oito minutos de duração, evoca o melhor do rock progressivo dos anos 70 sem o abuso dos teclados, mas com pianos em profusão e arranjos de muito bom gosto.

Para aqueles que buscam originalidade, o trabalho de Negri é ousado, mas não inovador. É possível identificar milhares de referências, de Procol Harum a Strawbs, de Moody Blues a Yes, de Pink Floyd da fase "Meedle" e "Atom Heart Mother" a Renaissance.

Portanto, não é original, mas é instigante. Quem é que hoje em dia se preocupa com Procol Harum? Quem é que hoje em dia sabe quem é Gary Brooker, o mágico tecladista e vocalista desta banda inglesa importante?

A voz de Negri também soa diferente dessa vez, mais contida e aveludada, sem os arroubos verificados em trabalhos interessantes.

A canção assume toda a importância, com o predomínio de guitarras em tons mais altos e pesados, soando mais climática e menos invasiva. O piano ganga proeminência, especialmente na primeira parte.


O mergulho no rock progressivo clássico cede espaço para a psicodelia e o hard rock setentista na bela e radical "The Last Man on Earth", com uma guitarra nervosa e um teclado bem timbrado.

"Blind Superman" é uma das pérolas do álbum, uma balada densa, pesada e tocante que emula o auge do Queen e de Elton John, com uma interpretação dramática e angustiada.

Um das qualidades de Negri é atingir o grau exato entre a energia do rock pesado e a densidade climática pra "ambientar" a obra e dotá-la de um nexo lógico.

Não é a primeira vez que incursiona pelos caminhos conceituais e a experiência de 25 anos como músico é bem aplicada na narrativa de um artista talentoso, mas underground, que precisa provar todos os dias que a arte é essencial, que ele é bom e que merece sobreviver de seu ofício.

O título do álbum é pessimista – "o caminho do tolo" -, como se todos aqueles independentes que penam no underground fossem masoquistas ou discípulos de Dom Quixote para persistir em um árduo caminho para a satisfação e o bem-estar.

"O 'tolo' tem dois significados", explica o autor. "Fala do tolo que insistiu 25 anos numa missão praticamente impossível e o tolo da carta do tarô, que indica uma guinada na vida, abandonando um caminho para recomeçar de forma diferente, mas sem saber se é certo ou errado."

O tema é fascinante, mas não é novo. Pete Townshend, líder e guitarrista do Who, abordou os dilemas de um artista decadente e independente pelas circunstâncias. "Psychoderelict", de 1993, é o último álbum solo de Townshend e descortina a sordidez e a total falta de solidariedade e precariedade de um mercado musical predatório e decepcionante.

Negri começa pessimista, mas consegue enxergar luz adiante. A jornada é frustrante, pesada e cansativa, como ele descreve nas tensas "Lies Behind the Mask" e "No One Gets Here Alive", em as dificuldades são pontuadas e estigmatizadas, servindo de trampolim para uma espécie de redenção, que é esboçada em "Changing Times", que tem linha melódica e estrutura que remetem novamente a por Elton John. 

"Cursed Artist tem alguns toques de progressivo e letra bastante reflexiva, enquanto que"Dying City" é mais um tema pesado, que remete ao Rei Lagarto e tem refrão grudento, que segue a linha da faixa-título, que divide com "The Wicked" o posto de melhor do trabalho.

Gravado no Estúdio Minster e com produção do próprio Fabiano, o álbum traz Cesar Pinheiro na bateria e Ricardo Palma no baixo – que também responde pela mixagem e masterização. 

Não é uma obra fácil, mas é rica em sutilezas e detalhes, embalada por um trabalho exímio de guitarras em todo o álbum.

Exigente e detalhista, Negri não é um artista que facilita as coisas – ainda bem, pois é a sua forma instigante de compor e cantar que tornam "The Fool's Path" o seu melhor trabalho entre os 30 que já lançou solo ou com outras bandas. Um disco de tamanha qualidade e excelência traz esperanças diante de um panorama sombrio e de poucas perspectivas em um ano pavoroso que apenas se inicia.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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