Há 50 anos Paul McCartney implodia os Beatles e acabava com o sonho
Combate Rock
06/04/2020 06h41
Marcelo Moreira
Os sinais eram estranhos, como os que antecedem um tsunami. Uma calmaria, mas com indícios de que havia coisas estranhas. De forma sucessiva, os quatro músicos afirmavam que lançariam álbuns solo naquele ano de 1970, mesmo que o empresário tenha confirmado um disco da banda para meados do ano.
E então os fãs acordaram com a bomba de que o grupo perderam um de seus membros mais proeminentes. quem não leu os jornais ou não ouviu o rádio quando acordou e foi correndo para a loja de discos comprar o primeiro LP solo de Paul McCartney, autointitulado.
Era uma manhã fria de 10 de abril de 1970 quando o disco chegou às lojas e o encarte, como uma "entrevista" do baixista e cantor escancarava algo inacreditável: ele não era mais integrante dos Beatles. E mais: gravando todos os instrumentos, disse que não sentiu a falta de nenhum dos ex-companheiros no estúdio.
E foi dessa forma fria e impessoal que McCartney praticamente decretou, oficialmente, o fim dos Beatles há 50 anos. Foi um choque, uma comoção mundial, mas previsível, de certa forma.
A maior banda do mundo implodia com a saída de um dos compositores principais – atordoados, os outros músicos cogitaram continuar com outro baixista, mas se renderam ao óbvio e assumiram que tudo tinha acabado dias depois, entre mágoas, rixas e brigas internas feias.
Capa da coletânea 'Hey Jude', lançada no começo de 1970, quando os Beatles já não existiam mais como banda, embora a revelação só ocorresse em 10 de abril. A última sessão de estúdio do grupo, no dia 3 de janeiro, não contou com a presença de Lennon na gravação de 'I Me Mine', George Harrison, que acabou incluída no último lançamento, 'Let It Be' (FOTO: DIVULGAÇÃO)
A verdade é que Paul McCartney traiu os companheiros, já que em setembro de 1969, em uma reunião tensa entre os músicos, John Lennon largou a bomba: queria sair e não tinha mais intenção de tocar junto com os companheiros.
Foi o fim de uma crise que se desenrolava desde o lançamento de "Abbey Road", dias antes, mas que parecia contornada com conversas sobre projetos de novo disco e a volta dos shows ao vivo.
Abandonando à reunião de forma intempestiva, Lennon ficou incomunicável nos dias seguintes, mas foi convencido pelo empresário Allen Klein e por um desaforado telefonema de Paul a segurar a decisão por alguns meses para não atrapalhar o lançamento de "Let It Be", com material gravado em janeiro de 1969, mas programado para chegar ao mercado em abril ou maio do ano seguinte.
Vingativo e considerado-se injustiçado, Paul quebrou o acordo e tirou vantagem de lançar um álbum solo como ex-beatle antes do que os ex-companheiros.
A turbulência alterou todo o cronograma da banda. "McCartney", o álbum solo, ofuscou o lançamento de "Let It Be", que chegaria às lojas algum tempo depois. "Sentimental Journey", o disco de Ringo Starr, saiu semanas depois do fim da banda e até pegou carona na comoção. "Imagine", de Lennon, e "All Things Must Pass", álbum triplo e esplêndido de George Harrison, só seriam lançado no ano seguinte.
Derrocada e impacto absorvido
O fim da maior e melhor das bandas de rock foi uma bomba de grandes proporções, mas não causou as ondas de choque esperadas. O mundo não parou por conta disso. Houve comoção, mas nada que se comparasse, por exemplo, ao assassinato de John Lennon dez anos depois.
De muitas formas, parecia que fãs, jornalistas e a indústria esperava um desfecho como aquele. A sucessão de indícios de fim de festa eram vários desde o ano anterior, após o Festival de Woodstock, em agosto.
A morte de Brian Jones, em julho, já um ex-rolling stone, aprecia um presságio dos ventos perigosos que viriam – e que quase tragariam os próprios Rolling Stones em dezembro com a tragédia de Altamont, o festival mal organizado que terminou com um assassinato, muitas agressões e vários feridos. Um final repugnante para a Era de Aquário e toda aura de paz e amor do movimento hippie.
Curiosamente, o som que predominava no começo de 1970 era mais pesado e sombrio, com o áspero e agressivo "Led Zeppelin II", lançado no fim do ano anterior, com "Black Sabbath", a estreia da banda homônima de Birmingham – a gênese do heavy metal – e a decisão do Who de mergulhar no hard rock pauleira ao vivo, que tão bem foi captado no disco ao vivo "Live at Leeds", lançado no meio do ano mas registrado em fevereiro.
O show do terraço no prédio da Apple Records, em Londres, em 30 de janeiro de 1969: peraltice que acabou por intervenção da polícia foi o último suspiro dos Beatles enquanto banda. eles realmente se divertiram tocando ao vivo, mesmo sem púbico (FOTO: DIVULGAÇÃO)
As poucas notícias sobre as atividades após o lançamento de "Abbey Road" acenderam as luzes na imprensa. Quase todo mundo começou a ligar os pontos – campanha pela paz e viagem pela Europa de John Lennon e Yoko Ono, o álbum solo deles ao vivo gravado no Canadá em 1969, casamento de Paul McCartney e Linda Eastman sem a presença dos outros músicos, autoexílio de Harrison…
Para muitos, um sinal bastante explícito foi a participação de John Lennon e Ykoo Ono no abortado especial de TV "Rock'n'Roll Circus", dos Rolling Stones, em dezembro de 1968, quando o beatle se mostrava desenvolto à vontade tocando com outros músicos.
Mudanças eram especuladas, mas nada que supusesse que um dos quatro pularia fora. A "demissão" de Lennon não vazou, mas em nenhum momento sua convicção em deixar o grupo foi abalada. Tanto que praticamente não conversou com os companheiros desde o fim de setembro do ano anterior. John nunca perdoou Paul pela traição a respeito do fim da banda.
Se o começo do fim ocorreu com a morte por overdose do empresário Brian Epstein, em meados de 1967, não dá para dizer que este tenha sido o fator determinante.
A turbulenta trajetória dos quatro caipiras de Liverpool de músicos talentosos a mega-astros mundiais em meros quatro anos cobrou um preço alto em todos os sentidos, de privacidade e aspirações artísticas, passando por um crescimento pessoal e profissional que esbarrou na falta de competência e apoio confiável na condução dos negócios.
A beatlemania deu lugar a uma banda complexa e consciente de suas possibilidades e do imenso salto que tinha dado – mais ainda, eram músicos profissionais conscientes de que eram a ponta de lança de uma das mudanças culturais mais impactantes da história do Ocidente.
O impacto de tudo isso foi brutal. Totalmente inseridos no contexto de mudanças que o planeta passava e prontos para encabeçar qualquer tipo de revolução, os quatro entraram de cabeça na trilha de excelência da criação artística. Eram considerados gênios da raça, assumira isso e gostaram demais do novo status. Como cada um lidou individualmente com isso em um mundo que evoluía rápido demais definiu o destino da maior de todas as bandas.
Vários biógrafos e historiadores da música são quase unânimes em apontar que o fim dos Beatles em um futuro próximo não só era previsível diante dos fatos entre 1967 e 1970 como, de certa forma, desejável por uma série de motivos, que vão desde as esperadas aspirações individuais e divergências de interesses pessoais até a acirradíssima e pesada concorrência de outros gênios do rock ingleses e norte-americanos.
Philip Norman, talvez o historiador que mais conhece Beatles, ao lado do biógrafo oficial Hunter Davies, insinuou uma certa fadiga criativa nos livros caudalosos "John Lennon" e "Paul McCartney".
Assim como outros escritores, ele especula que a separação em 1970 teria sido uma bênção, mesmo não sendo totalmente programada ou deliberada, diante de desafios considerados "assustadores" por conta da evolução rápida e da qualidade absurda de novos artistas de então, o que poderia colocar os Beatles em maus lençóis e colocá-los de escanteio, com o risco de ficarem obsoletos como Elvis Presley, por exemplo.
Capa e contracapa de 'McCartney', primeiro álbum solo lançado ainda em 1970 e que praticamente sepultou os Beatles; Paul aparece na contracapa com a filha Mary, recém-nascida
Estrada para a irrelevância?
Esse risco era real? Difícil dizer, mas é fato que os quatro, em carreiras solo nos anos 70, reforçaram a aura de gênios e quase intocáveis. Separados, se tornaram algo como Pelé, para sempre gênio da raça, independente da idade ou se jogasse muito mal ou se ficasse muito tempo sem fazer gols.
Quase todo mundo, inclusive eles, descobriu somente mais tarde que ser um beatle era bem pesado, um fardo. Ser um ex-beatle acabou por ser um menos problemático e mais fácil de assimilar e suportar.
Não é por outro motivo que Ringo Starr, em meio aos festivos anos 90, brincou em uma entrevista a uma revista inglesa que tinha pena de Mick Jagger por ter se tornado escravo de uma entidade chamada Rolling Stones.
Visão semelhante teve um crítico da Rolling Stone norte-americana ao analisar o fraco "Bridges to Babylon", de 1997, ao escrever que os Stones estavam presos a si mesmo para a eternidade, como se fosse o capitão do navio fantasma condenado a navegar para sempre e nunca morrer – é a lenda do Holandês Voador (Flying Dutchman), que virou ópera escrita pelo alemão Richard Wagner em 1843.
Maldição ou não, a separação dos Beatles foi símbolo perfeito do final de uma era na cultura pop, e por que não, da cultura ocidental.
Toda a efervescência de Londres e a rápida agitação cultural dos anos 60, desde a "libertação" da juventude, o avanço e e mudanças de costumes na Europa e nos Estados Unidos, o surgimento do movimento hippie e as matrizes de uma revolução político-cultural (crescimento de uma visão politica de esquerda, movimento hippie, popularização de várias drogas e muita criatividade artística) foram soterradas pela realidade e pelo pragmatismo político representado pela asquerosa Guerra do Vietnã.
Um mundo sem os Beatles deixava um gosto muito amargo na boca e um vazio imensa cabeça de fãs de rock e de música, um vazio semelhante aquele deixado por Pelé quando se aposentou ou quando da morte de artistas importantes, como Michael Jackson, David Bowie, Dio ou Lemmy Kilminster (Motorhead).
No entanto, com a predominância do pragmatismo e do "Leit It Be" (deixe estar, um dos grandes hits dos Beatles), o mundo seguiu em frente e um cinismo pouco lisonjeiro abraçou o mundo das artes e do entretenimento, que não teve pudores se jogar com tudo no mundo corporativo e dos negócios.
Talvez o fim tenha vindo de forma meio abrupta e muito cedo, o ponto de vista do público. Por mais que fique difícil de imaginar que tipo de banda os Beatles seriam nos anos 70 e que tipo de carreira (re)construiriam, ficou a sensação de algo foi interrompido cedo demais.
Paul e John não escondiam isso, por mais que gostassem de dizer que uma reunião nunca esteve nem perto de acontecer (discurso que mudou um pouco ao longo dos aos aós o assassinato de Lennon).
Cinquenta anos depois, além da óbvia saudade, a sensação de interrupção abrupta ainda permanece, e nem o projeto "Anthology", de 1994, reunindo os três beatles então vivos, foi capaz de aplacar.
Diante de tantas e tão rápidas mudanças no mundo em 1970, a separação dos Beatles foi absorvida de forma ligeira, apesar da força do terremoto. O "deixa estar" assumiu a condução das coisas e desenhou um cotidiano bem diferente daquele que a maioria dos fãs de rock e de música pop esperavam, e desejavam.
Sobre os Autores
Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.
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