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Policiais querem determinar o que você pode ouvir ou tocar

Combate Rock

28/02/2020 07h00

Marcelo Moreira

Tem gente que gosta de traduzir "underground" como submundo. Em muitos casos, o termo se aplica, especialmente quando se trata de crime organizado.

Entretanto, aquela cena musical, underground mesmo de periferia, envolvendo rock, rap e funk, é tratada dessa forma pelas polícias brasileiras.

Músicos, frequentadores e organizadores de eventos se tornaram "criminosos organizados" aos olhos de agentes da repressão, sejam policiais miliares estúpidos, policiais civis sádicos e autoridades estaduais ou federais autoritárias e fascistas.

Esse estado de coisas ficou claro quando da intervenção fascista da PM pernambucana no show da banda Janete Saiu Para Beber no carnaval recifense.

A apresentação foi interrompida por policiais que não se conformaram com a execução de músicas das bandas Chico Science e Sheik Tosado, que foram homenageadas na ocasião.

A alegação, segundo os integrantes da banda, foi de que "músicas de Chico Science estava proibidas de ser executadas na cidade".

Os policiais estúpidos se recusaram a dizer de quem partiu a ordem, e ameaçaram o vocalista da banda de detenção se a ordem fosse descumprida.

Organizadores co carnaval local conseguiram contornar a situação e evitaram transtornos. Só que os "agentes da lei" continuaram ameaçando e intimidando músicos e espectadores.

A banda Zefirina Bomba denunciou esse absurdo em suas redes sociais. Quem esteve no show relatou nos comentários de posts que coisas mais bárbaras ocorreram.

Chico Science & Nação Zumbi (foto: Fred Jordão)

Enquanto os músicos eram ameaçados no palco, parte do público que protestou contra a ação foi intimidada por outros policias, que, de forma truculenta, alegavam que estavam "zelando pela segurança, pois aquelas músicas louvavam bandidos e incitavam brigas".

Nem a Secretaria de Segurança Púbica de Pernambuco nem o comando da PM do Estado se manifestaram sobre o ocorrido e as supostas "alegações" dos "agentes da lei".

Combate Rock publicou mais esse absurdo de afronta à liberdade de expressão e à Constituição,hmando a atenção de outras pessoas se manifestaram, de forma privada, denunciando o que já desconfiávamos em tempos bolsonaros nojentos: perseguição política a promotores e músicos identificados com o "comunismo".

Ou seja, agentes governamentais estão discriminando, na área de artes, cultura e entretenimento, promotores de eventos e artistas contrários ao conservadorismo fascista professados por apoiadores da excrescência Jair Bolsonaro e governadores que o apoiam. Isso é censura, o que é vedado pela Constituição.

Tão nojento quanto é a exigência, por parte de contratantes, públicos ou privados, de apresentação prévia do que "será exibido ou executado", seguido de advertência expressa de que não serão toleradas "nenhuma manifestação política contrária a Bolsonaro ou aos governos municipais e estaduais de plantão".

Houve gente até que tentou constar isso em contrato, mas, sabiamente, recuou diante dos veementes protestos. Mas as advertências forma mantidas, sob ameaça de desligamento de equipamentos, interrupção do espetáculo, solicitação da presença de policiais militares e até de agressão.

Então quer dizer que, a partir de agora, bandas de música terão de apresentar previamente o repertório dos shows à "autoridade policial de plantão" ou aos promotores do evento para que não haja qualquer possibilidade de "incitação à confusão ou brigas"?

É isso que podemos interpretar a respeito da vergonhosa e nojenta tentativa da PM pernambucana de interferir no show da banda Zefirina Bomba. Não pode executar músicas de Chico Science? E quais outros artistas estão "vetados"? Quem determinou isso? Quem é o imbecil que determina o que é ou não "música que incita briga e desordem"?

"No começo de janeiro, um idiota em São Paulo me pediu a lista das músicas que minha banda iria tocar. Foi em um minifestival de hard rock em frente a um bar, mas em local aberto. Eu perguntei o motivo daquilo. Nervoso, o cara que se dizia dono do bar e patrocinador gritou dizendo que ou eu mostrava o setlist ou não não deixaria minha banda tocar. Como já tínhamos recebido o cachê ridículo, nem montamos o equipamento e fomos embora. Das seis bandas programas, só três tocaram,após mostrar a lista de músicas e  sob advertência expressa de que não poderiam fazer declarações de protesto", disse um guitarrista que entrou em contato privado com o Combate Rock.

FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Ao ler o reato que fizemos a respeito do ocorrido em Recife, um promotor de shows de metal da Grande São Paulo relatou que tem ouvido situações semelhantes. "Quem está organizando shows de rock e de rap está tendo muito cuidado na hora de escolher as atrações. É uma autocensura que vem desde o ano passado. Alegam que recebem ameaças de grupos de inspiração fascista – de que vão quebrar o bar, de que vão matá-lo, de que vão agredi-lo, de que vão acionar a prefeitura e vereador tal para cassar o alvará. São intimidações de todo o tipo."

Dos seis relatos que recebemos em modo privado, o mais chocante foi o de um baterista aspirante a DJ que mora na zona sul de São Paulo. Como nos casos anteriores, também pediu para não ser identificado. Leu o que aconteceu em Recife e associou-o ao que vê todos os finais de semana, de sexta a domingo.

"Achávamos que haveria mais problemas com a polícia quando Bolsonaro e [João] Doria assumiram, em 2019. No começo foi sossegado. Os eventos de rock e rap na periferia, até quando iam pela manhã, não tinham intervenção. Curiosamente, do nada, de outubro para cá houve um 'aperto' nas abordagens e tudo piorou depois das mortes em Paraisópolis [quando nove jovens foram pisoteados após uma abordagem policial em um baile funk]. Intimidações e ameaças de todo o tipo eram norma, mas não mais nas imediações das festas, mas nos ônibus, um pouco mais longe, e nas avenidas mais próximas", disse o músico.

A coisa ficou tão séria que ele ouviu conversa de que os "recados" dos policiais chegavam dias antes dos eventos, dando conta de que os DJs e rappers não poderiam nem pensar em abordar o "ocorrido" em Paraisópolis e que discursos serão proibidos. Mais ainda: nenhuma música alar mal de policiais, de violência ou abordar qualquer tipo de "crime ou 'vida lôka'."

"Para mim estava claro que era uma censura, que vigora até hoje em alguns lugares. Eles não são onipresentes e não conseguem ver o que acontece em todos os lugares, mas, de alguma forma, eu sei que eles ficam sabendo. As pessoas intimidadas sabem que as ameaças não são balela, que são verdadeiras e que podem vitimar qualquer um. Todo mundo ficou com medo, já que as retaliações agora não ocorrem mais na festa ou no baile, mas um pouco mais longe, até em outros dias. E sobra para todo mundo. Pode ser apenas ameaça, que nada vai acontecer? Pode, já que não dá para comprovar. mas o clima de medo pegou pesado, e ninguém arrisca", diz o baterista.

Mas você já passou por isso? Já foi abordado em dias de shows ou festas longe do local? "Sim, uma vez, no começo de dezembro passado, em uma avenida perto do Jardim Ângela. Curiosamente, eu estava indo para Santo Amaro, em um sábado à noite, levando a minha namorada para casa, perto de 22h. Nos dois sentidos da avenida houve uma blitz da PM, que supostamente estava fiscalizando documentos de carros e motos, mas começaram a parar ônibus e mandar descer quase todo mundo. Parte da galera teve de descer e o ônibus parado, esperando a 'batida'. Por sorte não éramos o alvo, no sentido Santo Amaro, e fomos liberados depois de 15 minutos, mas eu soube que, nos outros três ônibus abordados no sentido contrário, ou seja, da galera que ia para os bailes, os policiais deram uma canseira em muitos na tentativa de fazê-los desistir do programa."

São relatos fortes, ainda que difíceis de comprovar. No entanto, são leitores do Combate Rock que acompanham os eventos que estamos noticiando desde as eleições de 2018. A escalada do autoritarismo, das tentativas de censura e ataques à liberdade de expressão ocorrem em profusão desde aquela época.

Como não houve queixas formais, a Polícia Militar de São Paulo e a Secretaria de Segurança Pública não têm registros de tais "ocorrências", o que é absolutamente normal. Em outras situações específicas, ambas as instituições informaram não haver registros de abusos e que as abordagens de fiscalização seguem o padrão das instituições na prevenção e no combate ao crime, sempre respeitando a lei e os cidadãos.

Não duvidamos dessas orientações, mas de algum lugar vem alguma orientação para que policiais e agentes da lei intervenham para impedir "tentativas de desacato e de críticas aos agentes públicos e às autoridades estaduais".

Então soldados, cabos e oficiais têm a desfaçatez de descumprir a lei e intimidar cidadãos, impondo uma "censura prévia e branca" aos artistas, em São Paulo e no Brasil, e ninguém se responsabiliza por isso? Então esses agentes têm carta branca e liberdade para cometerem esses desatinos?

Não dá para tolerar que a polícia – na verdade, o Estado – decida o que podemos ou não ler, ver ou ouvir.

Não dá para admitir que policiais exijam de antemão a lista de músicas de shows para saber o que pode ou não ser tocado.

Não dá para esperar a PM autorizar ou não a realização de um espetáculo minutos antes de ele começar.

Não dá para aceitar a imposição policial de evitar protestos políticos ou xingamentos a quem quer que seja.

Não dá para engolir determinação de não criticar as forças de repressão justamente quando estamos em um tempo em que as mortes causadas por policiais estão em ascensão constante e vitimando cada vez mais inocentes, principalmente no Rio de Janeiro.

Nenhum policial tem o direito de dizer o que nós temos de ouvir ou o que podemos dizer – contra ou favor de quem quer que seja – onde quer que seja. Que todos nós, especialmente do rock, mas de todos os segmentos artísticos e de entretenimento, nos insurjamos contra esse clima de terror paira faz tempo sobre nossas cabeças, e que tende a piorar.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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