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Comunicação no rock: desprezo ao conteúdo vai cobrar o seu preço

Combate Rock

24/01/2020 06h48

Marcelo Moreira

Um velho ditado norte-americano do começo do século XX diz que ninguém nunca deixou de ganhar dinheiro com a ingenuidade humana – existem sempre aqeles que querem ou não se importam de ser receber menos do que merecem (mesmo de serem enganados).

Por muito tempo as emissoras de rádio brasileiras, seguindo o modelo americano de FM, praticamente impuseram aos ouvintes programações massificadas e engessadas, geralmente movidas a jabás (dinheiro que as gravadoras e empresários davam para locutores e donos de rádio para tocarem determinmadas músicas).

É claro que o rock nacional se beneficiou bastante desse tipo de situação a partir dos anos 80. As chamadas "rádios rock" e algumas emissoras públicas, como a rádio USP, tentaram mudar o cenário investindo em informação, novidades, inovação e artistas diferentes, quase sempre contratando profissionais competentes e antenados.

Entretanto, foram poucas as iniciativas que prosperaram, já que dá trabalho oferecer informação de qualidade, programação diferente e de qualidade e oferecer algo novo e inusitado. Se o lucro vem fácil, por que apostar em artistas novos, especialmente quando temos um público pouco exigente?

Vinte ou trinta anos depois o resultado pode ser observado sem muito esforço: a redescoberta do podcast, emissoras trocando de diretriz musical, voltando ao rock, largando-o de novo e, o pior, abrindo mão de conteúdo de qualidade e de profissionais que sabem o que fazem e oferecem coisas bacanas, instigantes e inteligentes. Perdem anunciantes e perdem audiência.

Desafio de músicos, empresários e ouvintes é entender as mudanças no mercado e conseguir algum tipo de fidelização no meio de vá rias formas de ouvir e consumir música (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Estacionadas em um mesmo padrão do século passado e sem inteligência ou disposição para ousar, o mundo radiofônico, que sempre ironizou o podcast, agora se vê no dilema de combater esse formato que foi ressuscitado e parece estar ganhando a preferência do público.

O diferencial das emissoras de FM de rock, que as pesquisas indicaram tempos atrás ter um público mais qualificado e com um poder aquisitivo um pouco mais alto, era o conteúdo mais qualificado, algo que lentamente vai sendo diluído e desperdiçado. Lá atrás, quando as especializadas em rock surgiram, havia um firme propósito de respeitar o ouvinte, não subestimá-lo e não tratá-lo como ingênuo, algo que, em parte, também foi ficando pelo caminho.

Na verdade, o problema é mais complicado e mais antigo, já que as novas tecnologias estão afastando o jovem do jornalismo tradicional e das emissoras de rádio desde a virada do século.

A segmentação, o streaming  a facilidade de se obter música tornaram, de certa forma, as rádios obsoletas. Uma solução, que está sendo abandonada agora, era a aposta em conteúdo diferenciado e, sempre que possível, independente de um patrocinador específico – ou seja, a emissora tem (ou tinha) de acreditar no projeto e encampar o programa, e não apenas ceder horários para que terceiros o ocupassem, independentemente da orientação editorial e/ou política do conteúdo.

Em pleno século XXI não dá para cravar que as rádios se esforçam para ganhar dinheiro ludibriando o ouvinte – seria uma afirmação leviana. Entretanto, ao oferecer mais do mesmo e produtos ruins e as mesmas músicas de sempre essas emissoras, principalmente as de rock, subestimam a capacidade e o gosto de seus ouvintes, atraindo todo tipo de crítica e escárnio nas redes sociais.

As duas principais emissoras do segmento roqueiro, com suas ramificações pelo país, padecem desses problemas graves e, aparentemente, não conseguiram encontrar soluções.

O programa 'Filhos da Pátria', de Clemente Nascimento, saiu da programação da rádio Kiss FM  (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Os comentários a seguir são meus com base na audição das emissoras e em comentários de gente qualificada que entende do assunto – são impressões a respeito do que apresentam atualmente.

A 89 FM tentou ser mais ousada depois de ficar por alguns anos fora do ar. Com seu retorno à programação roqueira, há alguns anos, tomou o caminho interessante e correto de se distanciar de sua concorrente, a Kiss FM: foi em busca dos jovens que ainda se dispõem a ouvir rádio, gostam de rock mas não são tão radicais a ponto de só ouvir rock.

Além disso, encheu a programação com locutores e locutoras "descolados" e programas específicos entremeados por "notícias" que supostamente interessariam a esses jovens dos anos 2010 – fofoca, celebridades, lançamentos de games e amenidades.

Pode ter sido erro de cálculo ou apenas um teste para ver o que estava "pegando", mas o fato é que a locução gritada e cheia de piadas tontas, além de uma certa falta de agilidade, desgatou o público alvo.

Na tentativa de correção de rumo, foram criados programas para tratar de temas específicos no meio do dia que soaram fora da curva, a ponto de uma discussão sobre um assunto ligado à saúde feminina, às 14h, ter durado 41 minutos. A música acabou ficando em segundo plano.

Neste aspecto, a rádio tentou também fazer programas engraçadinhos à tarde e começo da noite ligando "assuntos  atuais" com algumas canções. Por conta da suposta agilidade do rádio e da falta de tempo, ficou faltando uma contextualização adequada, e a atração perdia a sua direção.

Por fim, a 89 FM, em alguns momentos do dia, tentou se aproximar mais do classic rock, especialmente os grandes sucessos dos anos 90, numa tentativa de atrair os antigos jovens daquela época e os atuais moleques. Uma tacada arriscada? Ainda é cedo para fazer qualquer afirmação.

Imagem ilustrativa (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Na Kiss FM a ordem é mexer pouco ou quase nada naquilo que supostamente está dando certo. Nada contra – apenas lamentamos a perda do pouco conteúdo diferenciado de qualidade, como foi o caso do programa "Filhos da Pátria", de Clemente Nascimento (vocalista e guitarrista dos Inocentes e da Plebe Rude).Oficialmente ainda não se sabem os motivos do fim do programa, mas é triste que novamente a Kiss esteja sujeita a perder conteúdo de qualidade, como ocorreu com o "Gasômetro", do jornalista Gastão Moreira, que ficou alguns meses fora do ar (felizmente um novo acordo fez o programa retornar à grade da Kiss).

O "Filhos da Pátria", assim como o "BR 101", é um raro momento de coisa diferente na programação engessada e nem um pouco criativa, com as mesmas três músicas de sempre de artistas de 40 anos atrás tocando.

Ainda existe o "Rock a Três", que merece destaque por realizar entrevistas, mas o conteúdo de qualidade termina aqui. Passa uma certa impressão de estagnação em termos de programação, que eventualmente pode se refletir na audiência.

Não tivemos, até este momento, acesso a pesquisas que meçam crescimento ou decréscimo na audiência das duas emissoras.

De forma empírica, o que constatamos, em vários ambientes de redes sociais e de frequentadores de shows e Galeria do Rock, em São Paulo, é que as duas rádios não são mais a referência de qualidade e de inovação. A busca por novidades agora é feita em podcast e web rádios estrangeiras e algumas nacionais. Rádios, no dial, estão cada vez menos sendo acionadas até mesmo como trilha sonora ambiente de festas ou viagens.

Claro que cientificamente essas "amostragens" não são representativas, mas podem indicar um momento que pode vir a ficar delicado para duas outrora grandes potências do rádio brasileiro e que foram oásis roqueiros dentro de um mundo artificial e plastificado de rádio que só tocam porcaria, em sua grande maioria, com predominância de sertanejo, o pior da música eletrônica e R&B e coisas religiosas abjetas.

Nos grupos verificados, o interesse pelas emissoras de rádio roqueiras está menor, sobrando críticas para a programação "engessada" e pela falta de conteúdo diferente e de qualidade, coisa que as web rádios oferecem.

Muitos especialistas  ainda dizem que estamos em um período de transição no mundo musical, com aristas, empresários e ouvintes em busca de novas opções de entretenimento e de consumo de música. As emissoras FM estão inseridas no mesmo contexto e também tateiam em busca de soluções.

O que fica evidente, ao menos para nós, do Combate Rock, é que o pessoal das FMs ainda está preso a ideias do passado e ainda resiste a inovar no conteúdo informativo e diferente para fazer frente a podcast e web rádios. Podem ainda não estar sentindo os efeitos da concorrência, mas estes virão bem antes do que imaginamos.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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