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Um selo para 'alertar' pais, 35 anos depois

Combate Rock

09/01/2020 06h42

Marcelo Moreira

Era inverno de 1995 no centro de Santo André, no ABC Paulista. O repórter não tinha cara, lá naquela época, de fiel da Igreja Universal do Reino de Deus, mas até que não fez feio no salão grande daquela unidade da seita.

Sem tantos pudores, o pastor vociferava contra as "liberdades morais" nas artes, na cultura, nas novelas da Globo.

Chamava as atrizes de prostitutas e acusava a emissora de incentivar a prostituição, o homossexualismo (na época considerado pelos "evangélicos" daquela seita como doença) e de atentar contra os "bons costumes".

Mas o mehor estava no final do culto, o motivo que levou o repórter até o local infecto: as investidas do pastor (que o repórter esqueceu o nome) contra a banda Raimundos, a mais imoral de todas.

Com suas letras "infames e com palavrões", o grupo brasiliense era o pior exemplo para a juventude, "verdadeiros corruptores de menores, mais nojentos do que os Titãs".

Os brados eram para que o governo Fernando Henrique Cardoso fosse "derrubado" e que um governo de "pessoas de bem" assumisse e colocasse o Ministério da Justiça para "reativar a censura e proibir obras sacrílegas e hereges", ou que pelo menos houvesse um aviso sobre o conteúdo nos CDs, DVDs, livros e programas de TV.

Exatamente como ocorreu nos Estados Unidos dez anos antes quando um bando de mulheres asquerosas, esposa de senadores, inventou de criar um "selo"  e LPs avisando sobre o "conteúdo" explícito nas letras de rap e rock.

Um tiro no pé, pois isso só aumentou a curiosidade sobre tais obras e explodiu as vendas de tais produtos.

O efeito colateral é que obrigou artistas importantes a deporem em um comitê do Senado sobre assunto – uma vergonha em todos os sentidos, mas que garantiu momentos hilários, como Dee Snider humilhando políticos burros en ignorantes em seu depoimento. Clique aqui e saiba mais sobre a questão.

Vinte anos após a visita do repórter a uma "igreja" da seita em Santo André, e 35 anos depois do vexame do PMRC (Parents Music Resource Center), nos Estados Unidos, uma articulação para "avisar" os pais sobre o "conteúdo nocivo" de obras culturais está ocorrendo em um âmbito religioso-evangélico.

A informação não é nada surpreendente em tempos bolsonaros, onde o autoritarismo e o moralismo nojento estão sendo ressuscitado.

Curiosamente, a coisa teria começado, "coincidentemente", em igrejas da Universal em São Paulo, segundo apurou engenheiro civil paulistano que nas horas vagas toca bateria em uma banda de hardcore.

Na noite de véspera de Natal de 2019, na ceia de família da mulher dele, um parente fanático por bispos evangélicos discursou a favor de Jair Bolsonaro, da substituição da Constituição pela Bíblia, do fim da democracia, da volta da ditadura militar e da censura total a tudo.

Na briga que se seguiu – com direito a copo na cara do crente sem noção -, o engenheiro, que chamaremos de Rui (ele pediu para não ser identificado), escutou que um pastor qualquer havia mencionado em um culto que a Universal estaria articulando no Congresso algum tipo de controle ou censura, ou que pelo menos o selo de advertência fosse criado, em um primeiro momento.

O faro de repórter, anda que amador, levou Rui à tal igreja frequentada pelo parente da mulher, na zona leste de São Paulo. Foi no culto de um pastor que era o mais feroz defensor dos lixos vomitados pelo crente na noite de véspera de Natal.

Todas as diatribes que o parente crente vomitou foram reproduzidas ainda com mais veemência no culto – parece ser um mantra decorado desde os anos 80, com ataques às novelas, ao rock, ao rap, ao funk e a necessidade de algum tipo de "controle para proteger a nossa juventude".

Ao final do culto, Rui foi até o pastor e se passou por fiel pedindo mais informações a respeito da "iniciativa" de um selo de advertência nas obras culturais.

Dee Snider (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Animado, o pastor fez um discurso de dez minutos e deu o nome de dois parlamentares evangélicos que já teriam recebido as "solicitações" e que estariam articulando os avisos.

O trabalho de repórter dele terminava aí. O Combate Rock entrou em contato com os gabinetes dos dois parlamentares – um deputado estadual e outro, federal – não obteve informações a respeito.

Assessores informaram desconhecer qualquer iniciativa que tenha chegado aos gabinetes ou que os parlamentares estivessem ao menos conversando sobre o assunto.

O deputado federal, por meio de sua assessoria, informou, posteriormente, que não sabia do que se tratava e que estava surpreso com seu nome sendo envolvido no assunto.

Aparentemente, os deputados foram "vendidos" pelos pastores, que estariam usando o nome para semear a discussão, para mostrar que havia algum tipo de articulação ou que até mesmo pudessem ter acreditado em uma fake news interna. Por conta disso, também não divulgaremos o nome dos deputados.

Por outro lado, se não há uma articulação em alto nível nos parlamentos, há ao menos a discussão do assunto em alguns ambientes evangélicos mais radicais, digamos assim.

A amostra não pode ser indicativo de que há uma articulação em andamento, mas há relatos colhidos pelo Combate Rock de que em três igrejas de uma das seitas mais disseminadas do país houve pastores com o mesmo discurso, embora não com os mesmos detalhes, no final do ano e no começo deste. Os fatos teriam ocorrido na zona leste e no ABC.

Em outra denominação evangélica, na zona norte de São Paulo, os fiéis foram surpreendidos pelo discurso do pastor, ensandecido por causa da polêmica envolvendo o Jesus Gay do especial de Natal do Porta dos Fundos.

Espumando, o tal pastor, que sempre foi veemente, mas relativamente moderado, vociferava contra as "heresias" e os "ataques" às religiões e pregava limites e controles à produção cultural, contendo-se para não falar a palavra censura. Esse relato, feito de forma horrorizada, foi de um amigo de Rui, também músico, que assistiu ao culto.

O Combate Rock entrou em contato com administrações de quatro das principais seitas que operam no Brasil. Apenas duas responderam, de forma lacônica, por meio de assessorias de imprensa, de que desconhecem qualquer articulação neste sentido.

Como afirmei, é muito pouco para enxergar qualquer tipo de articulação, mas não é de se espantar que esse tipo de "reinvindicação" cresça e inspire algum parlamentar a pensar no assunto.

Fica o alerta, no entanto, sobre eventuais tentativas de coerção e censura ao rock, à música e às artes em geral. É bem possível que algum parlamentar ache a ideia do selo "razoável" e resolva levar a discussão à frente.

Na Câmara dos Deputados, pelo levantamento realizado pelo Combate Rock, há várias iniciativas que propõem variados graus de intervenção na produção cultural, mas nenhum que fale explicitamente em censura ou recolhimento de obras. Também não há nenhum em estágio avançado de tramitação em comissões temáticas.

O mais estapafúrdio projeto de número 5.194/2019, do deputado federal Charlles Evangelista (PSL-MG), que pretende criminalizar "qualquer estilo musical que contenha expressões pejorativas ou ofensivas". Leia aqui. 

De acordo com a descrição do projeto , o deputado quer acabar com letras que incentivam "o uso e o tráfico de drogas e armas; a prática de pornografia, a pedofilia ou estupro; ofensas à imagem da mulher; e o ódio à polícia".

 

 

 

 

 

 

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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