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‘Entertainment!’, álbum de estreia do Gang of Four, completa 40 anos

Combate Rock

13/10/2019 06h45

Caio de Mello Martins – publicado originalmente no site Roque Reverso

"Entertainment!", do Gang of Four, é um daqueles álbuns que muita gente já escutou sem nunca ter posto pra tocar, ou mesmo sem nunca sequer ter ouvido falar da banda. O disco completa 40 anos nesta quarta-feira, dia 25 de setembro de 2019.

Já ouviu a levada da guitarra do Herbert Vianna em "Selvagem", com seus acordes em blocos cortantes de staccato?

Lembra do Sérgio Brito em "Corações e Mentes" cantando "às vezes acho que te amo, às vezes acho que é só sexo"?

E quanto aos gérmens espalhados por "Bleach", o álbum de estreia do Nirvana?

Pense em "Paper Cuts", em que a guitarra se alterna entre ressonantes acordes abertos e o ruído farpado da microfonia. Lembra da última vez em que você ouviu um DJ pondo "Take Me Out", fazendo nascer uma estranha energia sexual daquelas batidas rígidas e ansiosas? E quanto à "So What", do Ministry, em que o pulso e um fraseado etéreo de harmônicos criam a trilha sonora perfeita para o apocalipse?

Aos Paralamas, Titãs, Kurt Cobain, Franz Ferdinand e Al Jourgensen, juntam-se ainda na lista de admiradores confessos do Gang of Four: Flea, Michael Hutchence, Ian McKaye e Rage Against The Machine. Isso já dá uma ideia da dimensão que o álbum ganhou ao longo dos anos.

Você não vai encontrá-lo na lista dos álbuns mais vendidos de 1979, e provavelmente seus youtubers, podcasters e disc-jockeys favoritos de classic rock não devotarão a deferência que o álbum tem diante de tantos dos grandes nomes da indústria.

O que, por outro lado, é perfeitamente coerente. "Entertainment!" é o trabalho de uma banda que buscou desconstruir o rock em muitos sentidos. Não tanto por meio do charme naïf do punk em contestação à glorificação da proficiência técnica e profissionalismo da gravação; a estratégia do Gang of Four era desmontar a estrutura em que o rock se erigia.

O guitarrista Andy Gill idealizou os anti-solos: momentos na música em que a guitarra se reduz a um resignado chiado elétrico, formando um anteparo cacofônico para bateria e baixo assumirem o fio condutor da banda.

Seu estilo de tocar transgredia o papel da guitarra base, trocando as pontuações de acordes por golpes abafados e, no processo, afiliando a guitarra à seção rítmica; liberada do papel de construir melodias das quais a música pop depende para prender o ouvinte, a guitarra de Andy Gill explora formas brutas de se expressar, que conferem ao som do Gang of Four a força do rompante criativo de um quadro abstrato.

A cozinha do Gang of Four é algo fora de série. Tamanho era o desejo da banda ir contra a fluidez do ritmo, que Andy Gill debatia e formulava junto com o baterista Hugo Burnham as linhas percussivas. Burnham investe em contratempos e adiciona ali tantas marcações de tons, chimbaus e caixas que, à medida que os compassos se desenrolam, o padrão 4 por 4 roqueiro fica irreconhecível. Ambos são alunos dedicados do suíngue incontrolável de James Brown, filtrados pela força selvagem não só do punk, mas do pub rock de grupos como Dr. Feelgood – ícones do espectro mais indomável da classe trabalhadora britânica – e do dub. Vale enfatizar: MUITO dub.

Escolha contemporânea à união entre punk e reggae da Inglaterra daquela época, o dub também dotava a música de uma psicodelia menos idílica e mais paranoica do que há dez anos antes, no auge da contracultura.

Essa mistura de música jovem branca com apropriação da cultura do gueto negro se tornaria padrão-ouro na década subsequente – uma espécie de tempero pasteurizador perfeito para músicas de elevador ou consultório, popularizadas por rolos compressores da indústria cultural como Phil Collins, Michael Jackson, Hall & Oates e outros.

O efeito aqui, porém, é bem diferente. Tal qual outros álbuns lançados em 1979, como "Metal Box" (Public Image ltd.) e "Fear of Music" (Talking Heads), "Entertainment!" traz um som que revigora o rock e chacoalha o ouvinte do lugar comum.

E é precisamente esse o objetivo do Gang of Four. As letras lidam com o tormento de pequenas vidas que lidam com a insatisfação em seu cotidiano, cheio de incompletude, frustração, vícios, neuroses.

Quando Jon King canta "Sometimes I'm thinking that I love you/ But I know it's only lust" na faixa "Damaged Goods" (deu para sacar de onde o Sérgio Brito, dos Titãs, buscou inspiração?!), ele canta sobre o achatamento do desejo em tempos de sociedade de consumo de massa.

Aspirações e desejos legítimos do sujeito social só possuem espaço para serem realizados quando o indivíduo pendura suas chuteiras de trabalhador alienado e veste o uniforme de consumidor passivo.

Por meio da mídia, da indústria cultural e do consumismo, cria-se um verniz de coesão social que não só atenua a desigualdade entre ricos e pobres, tomadores de decisão e massas, mas também garante acesso ao gostinho doce da libido obtido sem conflito: durante as horas de um filme, uma série ou de um show, você pode até esquecer que na segunda-feira o retroshow de submissão e disciplina começa tudo de novo. A compensação vem fácil – basta seguir a lógica que todos seguem, trabalhe e compre – porém tem duração efêmera.

O desânimo desse vazio existencial é refletido pela voz blasé de Jon King, que reforça o sentimento misto de angústia e submissão do nosso "Average Joe" em "Return the Gift" – Gill e King encerram essa canção à capela com os repetidos e mecânicos versos de "please send me evenings and weekends".

Como a lógica cínica do mercantilismo de trocar a liberdade pela comodidade invade todas as esferas da vida contemporânea, Jon King busca mostrar que, na sociedade do espetáculo, o pessoal também é político. As relações se coisificam.

A "mercadoria estragada" de "Damaged Goods" é a própria amante do narrador – confrontado com uma crise, a reação automática (e cruel) do narrador é defender seu interesse: "Open the till/ Give me the change, you said you'd do me good/ Refund the cost/ You said you're cheap but you're too much!" A natureza desse conflito entre nossa libido e o desejo idealizado, inculcado por produtos massificados e seus clichês, é perfeitamente captada por "Contract": "These social dreams/ Put in practise in the bedroom/ Is this so private/ Our struggle in the bedroom."

Em outras músicas, King parece transmitir uma mensagem de esperança. O grau de alienação e niilismo que lubrifica o motoperpétuo de submissão das massas pode ser enorme, mas não dá pra negar que as respostas para todo este mal-estar estão bem no nosso nariz.

A faixa "5-45" também poderia se chamar "quinze para as seis", o horário identificado na Inglaterra com os telejornais locais e sua obsessão fetichista pela violência dramatizada, para o deleite da audiência e de seu mundo faz-de-conta maniqueísta (entenda-se o uso de conceitos deturpados como "cidadãos-de-bem" e "bandidos").

Tamanha é a brutalidade do noticiário que a percepção do incauto espectador ao sofá durante a ceia é afetada: "I watch the news/ Eating, eating all my food/ As I seat and watch the red spot in the egg/ Which looks like all the blood you don't see on the television."

Em "At Home He's a Tourist" – um monstro de canção, talvez uma das melhores fusões já feitas de punk e funk – King faz um comentário que poderia muito bem ser feito nos dias de hoje sobre a banalização do conceito de empoderamento, hoje totalmente cooptado por grandes empresas e seus discursos de posicionamento de marca: "She said she was ambitious/ So she accepts the process" – praticamente um ato consciente de masoquismo!

Quem compra esse álbum pensando em fruir 40 minutos de puro entretenimento pode se enganar redondamente. Ou não. A despeito da metódica desconstrução que a banda faz do entretenimento e de seu papel na manutenção do status quo, o som por si só é explosivo.

Nervoso, direto, rítmico e compulsivo, suas 12 faixas fazem uma releitura inquietante e espasmódica da música dançante, mas igualmente apelativa aos sentidos. Talvez essa dicotomia seja o grande trunfo do Gang of Four e de seu legado. Se, como declarou o baixista Dave Allen, a banda estava tentando "questionar a mentalidade de rebanho", qual é então o sentido de pregar para os convertidos?

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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