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Killing Joke e sua poesia do apocalipse passaram por São Paulo

Combate Rock

04/10/2018 17h00

Caio de Mello Martins* – publicado originalmente no site Roque Reverso

A entidade pós-punk britânica Killing Joke fez no domingo show único (e inédito) no Brasil em 23 de setembro.

Após 4 décadas de serviços prestados, os caras enfim brindaram os fãs brasileiros com uma poderosa e afiada apresentação no Carioca Club, em São Paulo.

Pico tradicional de baladinhas e matinês forró, sertanejo e afins que é, encravado no baixo Pinheiros, o Carioca costuma vitimar bandas de som pesado que de tempos pra cá começaram a frequentar a casa, que têm de se conformar com o som embaralhado e frequentes panes no sistema de PA.

Felizmente, o Killing Joke passou ileso e o que se ouviu foi uma verdadeira pedrada (cujas lascas não eram lá muito nítidas, é verdade) que fez a alegria da diversificada fauna dark que abarrotou o local.

Que bonito é…

"I like diversity", disse no meio do show o vocalista e bruxão de plantão Jaz Coleman. A frase, início de um discurso anti-Trump usado pra engatar a faixa "Corporate Elect", caiu como uma luva para quem pôde esquadrinhar com visão raio-x o público que se via na fila e aos poucos se concentrava nos botecos amiúdes.

Gatinhas sósias de Siouxsie, doidões fãs de krautrock e do lado mais lisérgico do progressivo, as introspectivas moças indies de franja e olhares tímidos, metaleiros-cabeça-alternas saídos diretamente de 1993, punks de rua com suas jaquetas repletas de bordados das mais obscuras bandas de hardcore, nerds com um fraco por stoner e Black Sabbath… o Killing Joke sempre foi isso: um agregador de tribos e sensibilidades.

Assim foi desde o princípio, nos anos 1980, quando seus shows congregavam viúvas de Ian Curtis, fãs beberrões do Motörhead, a trupe dos moicanos que bradavam "Punk's not dead" – todos celebrando, na Londres da época, o onisciente sentimento de fim de mundo.

Killing Joke em São Paulo (FOTO: REPRODUÇÃO YOUTUBE)

É durante o show que a "diversity" fica ainda mais patente. Cada qual tem sua maneira de curtir o KJ – air guitar? Tá valendo. Slam dance (ou seria zombie dance) dos góticos? Tá valendo. Pogobol? Bora. Houve quem rebolasse também, por que não? A batida disco-punk comandada por Paul Ferguson em "Psychee" e "Love Like Blood" – que abriu o set – convidam ao requebro da pélvis.

Aliás, há dúvidas de que Jaz Coleman ainda conserve todos os ossos da sua pélvis… Ô cintura dura! O que chega a ser um espanto, visto que em plenos idos de mil e novencentos e setenta e lá vai pedra Mr. Jaz também curtia um Chic e dobrava os joelhos com muito Dub (e otras cosichas más…).

Mas justiça seja feita, além de reger a plateia, o cara berrou quando teve que berrar e cantou quando teve que cantar – mais berrou que cantou, já que o set list teve pouco de álbuns mais melodiosos como "Night Time".

No total foram sete músicas dos 2 primeiros álbuns (cinco só do début homônimo, de 1980, uma das obras mais emblemáticas não só do pós-punk mas do rock alternativo em geral), e – compondo uma outra boa parte do repertório – uma seleção bem equilibrada dos álbuns da banda desde 2003, período que marca a retomada dos trabalhos após um hiato de sete anos.

Killing Joke em SP – Foto: Reprodução do YouTube Killing Joke em SP – Foto: Reprodução do YouTube Killing Joke em SP – Foto: Reprodução do YouTube Killing Joke em SP – Foto: Reprodução do YouTube

Vai pra puta que o…

Pariu, Sr. Paul Ferguson!!! Que energia tem esse batera. Um monstro.

Veneninho do jornalista: teria partido dele a escolha de não incluir nenhum petardo do ótimo "Hosannas from the Basements of Hell", de 2006, um dos poucos álbuns a não incluí-lo na fita mestre? All is possible. Teria sido fodástico.

Traduzir ao vivo a vitalidade e a perseverança de uma banda com 40 anos de estrada não é bolinho, e isso Ferguson fez do início ao fim do show, ditando o ritmo da banda com muita solidez.

Em "Asteroid" – que mais parece a resposta de Jaz Coleman ao Sepultura – Ferguson quase fez o lugar desabar. Não tô brincando.

Peso e suingue, solidez e nuance, sempre de forma heterodoxa. Não é à toa que as características de Ferguson atrás dos "tambor" explicam o charme eclético do KJ. E isso transparece ainda mais na guitarra de Kevin Walter. Qualquer metaleiro tem o dever de ouvir esse cara CRIAR O INFERNO NA TERRA dedilhando acordes abertos em uma semiacústica.

Em vez de tolher baixistas e vocalistas aos grilhões da ditadura dos riff masters, Kevin desliza um dedo aqui, outro ali, vibra as cordas soltas e cria uma ambiência cavernosa, hipnótica. Parece fácil, mas não é. Isso é trabalho de banda, amigo.

Killing Joke em São Paulo (FOTO: REPRODUÇÃO YOUTUBE)

Ferguson e o baixista Youth embalam o moto-perpétuo convoluto e visceral, e os riffs de Kevin ecoam no infinito para te transportar a outro mundo. "New Cold War" (de Pylon, último álbum da banda) foi especialmente gloriosa, mas claro que é com "Eighties" que Kevin reivindica o seu status como um dos maiores guitarristas dos anos 80 – Kurt Cobain que o diga.

Então…

Diz a lenda (e os próprios membros da banda, por increça que parível) que a primeira formação do Killing Joke foi completa graças a um ritual de magia negra com direito a pentagrama invertido desenhado a fogo, que "invocou" Kevin Walker para se juntar aos outros três como o guitarrista reservado por uma inexorável providência universal.

Desde então, Jaz & Cia. têm cantado o ubíquo apocalipse a se espreitar atrás das muitas "evidências" numerológicas, cuja maior herança é o surgimento das cinzas de uma civilização superior à "decadente" e "pervertida" sociedade atual, divorciada de suas dimensões intelectual, natural e espiritual pela tacanhice e ganância dos nossos tempos.

Killing Joke é o som do fim do mundo. Jaz já o esperou com avidez em 1982, quando chegou a desfazer a banda para se refugiar na Islândia do último e fatal cataclisma que viria. Não veio.

Mais de 30 anos depois, a humanidade continua pródiga em guerras, miséria, violência, (auto)destruição e agora essa tal guinada autoritária em escala global. É pra deixar feliz ou triste saber que o medo do colapso total segue alimentando estes quatro gentlemen britânicos??

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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