Topo

A era do elogio e da valorização da ignorância

Combate Rock

17/09/2018 06h46

Marcelo Moreira 

Muita gente costuma denunciar o que chamam de lado mais obscuro da revolução digital – hackers, cracker (hackers do mal), perda de privacidade, disseminação de notícias falsas e outras coisas bem mais complicadas. Pouca gente se dá ao trabalho de combater de verdade algo que é extremamente preocupante: a disseminação da ignorância e o desprezo pelo conhecimento.

Terreno fértil para o filósofo Umberto Eco (1932-2016) chamou de "voz estridente dos idiotas ("a internet realizou um feito, deu voz a uma legião de idiotas que antes estavam escondidos", afirmou o intelectual italiano), as redes sociais potencializaram o que de pior o ser humano costuma expelir – preconceito, ódio, violação dos direitos humanos e toda uma série de lixos.

Dentro da fauna digital, os youtubers são um dos seres mais perniciosos, principalmente aqueles seguidos por milhões de pessoas em canais entulhados de lixo. Alçados a celebridades, viraram "escritores" e "atores" de filmes publicitários, sendo "patrocinados" por empresas e recebendo muito dinheiro. Ou seja, parece que isso virou uma profissão.

E, entre esses "profissionais" – geralmente desqualificados para  área de comunicação e com formação precária -, apareceram os "booktubers", gente que faz "comentários" sobre livros.

Mas não são comentários quaisquer, como salientou o jornalista Paulo Roberto Pires em sua coluna semanal na revista Época.

Muitas vezes estapafúrdios e com a profundidade de um pires, os "comentários" não passam de resenhas rápidas e banais, sem qualquer análise crítica ou informações relevantes sobre a obra e o autor.

Fuçando um pouco mais, Pires descobriu que existe uma tabela de preços para esses tais de booktubers. Dependendo do "incentivo", o tempo de exposição a respeito da obra, podendo passar de um simples comentário para uma resenha rápida ou resenha com a exibição da capa do livro.

Picaretagem? Chame do que quiser. É um escândalo, embora amplamente difundido e, aparentemente, aceito como coisa normal por muita gente – gente demais, na minha opinião. Ninguém, além de Pires, jogou luz sobre esse fato escabroso.

Ele foi certeiro em seu diagnóstico sobre o perigo desse menosprezo à cultura: "Como se pôde ver claramente no episódio da tabela das 'impressões de leitura', os booktubers e seus apologistas orgulham-se de sua ignorância e defendem o amadorismo num reiterado elogio do desconhecimento de causa. Respondem a qualquer crítica no modelito consagrado pelas redes: quem diverge, diverge porque se sente pessoalmente ofendido por aquilo que critica e, ao divergir, passa recibo da importância de seu suposto inimigo, uma ameaça em potencial a seu lugar no mundo. Não se poderia mesmo esperar outra coisa de uma cultura centrada em monólogos e umbigos, na qual é inconcebível que se possa querer discutir questões que digam respeito ao coletivo, e não apenas ao sagrado direito à 'monetização"'.

Essa gente não se esforça para disfarçar a sua intenção: é a elegia e a glorificação da ignorância. Com um pouco de paciência, é possível vasculhar esse submundo das redes sociais e comprovar que a coisa é muito, mas muito pior do que podemos imaginar.

Os "defensores" dessa nova cultura vomitam argumentos risíveis, com viés de um certo "anti-intelectualismo", louvando "a liberdade e a democratização do acesso aos livros e à cultura", como se a mercantilização de comentários estapafúrdios pode ser considerado qualquer tipo de conteúdo cultural.

Em muitos comentários jogados ao vento nas redes sociais, o que se percebe é que essa gente perniciosa considera "a crítica literária e a mídia como instituições falidas, que não se comunicam com um número expressivo de pessoas, ou seja, que não influenciam ninguém — e que, portanto, não têm mais relevância", como percebe Paulo Roberto Pires.

Esse ambiente tóxico e putrefato pode ser perfeitamente estendido a quase todo o campo da cultura e do entretenimento, onde conteúdos patrocinados ou explicitamente pagos tentam ser travestidos de coisa idônea, séria e relevante.

Na área musical, com a indústria fonográfica destruída pela chamada revolução digital – que destruiu junto a mídia especializada, deixando um legado de erosão ética inacreditável -, a proliferação de youtubers que fingem produzir conteúdo segue na mesma linha da maioria dos booktubers que cobram para "divulgar" o que quer que seja. Não hesitam em esconder que despejam conteúdo pago, mesmo que seja em troca de "presentes" ou "favores".

Além do público em geral, que tem o seus direitos feridos ao ter sonegada a informação de que se trata de conteúdo pago/patrocinado, as maiores vítimas são os músicos sérios e jornalistas profissionais que tentam encontrar novos meios de divulgar conteúdo musical.

São aqueles que vivem de aulas por skype e que de vez em quando gravam vídeos com técnicas de guitarra/baixo;teclado/bateria/gaita.

Como não desconfiar de que um guitarrista famoso, ao deixar bem visível a marca de seu instrumento, não está divulgando uma aula dita "grátis", quando na verdade pode estar sendo patrocinado pela fábrica?

Músicos e professores com prestígio fazem questão de divulgar as marcas que os patrocinam – os endorsers – em seus vídeos abertos no YouTube justamente para que não haja dúvidas a respeito daquela iniciativa.

Entre os músicos e jornalistas musicais talvez seja uma situação um pouco mais complicada e delicada de se perceber quando o conteúdo pago é travestido de "dicas e aulas grátis".

No caso da maioria dos booktubers, pelo menos os que estão atuando no momento, é mais difícil de enganar justamente por conta de o conteúdo ser diferenciado – requer um estofo intelectual que é facilmente desmascarado quando se trata de um enganador.

No caso dos youtubers musicais, a linha que separa a picaretagem do conteúdo ético e responsável é muito tênue, o que ocasiona, algumas vezes, em acusações injustas de fraude jornalística ou de conteúdo.

Reprodução da capa da edição brasileira do livro "liberdade de Expressão: Dez Princípios para Um Mundo Interligado", de Timothy Garton Ash

Seja como for, a disseminação desse tipo de prática nas redes sociais contribui para aprofundar o fosso em que estamos, onde a música, em particular, definha sem ter como reagir ao desprezo com que o público do século XXI a trata.

Como ficou fácil obtê-la de graça, geralmente por meios ilegais, não há mais a menor preocupação com coisas como direitos autorais ou mesmo a simples valorização por si só da obra artística.

Os otimistas ainda acreditam que há salvação, que uma hora a revolução digital vai permitir o surgimento de novos procedimentos e práticas que valorizem os conteúdos culturais de modo geral, incluindo o jornalismo, que está na lona atualmente em várias partes do mundo.

Eu gostaria de realmente de acreditar nisso. Hoje, entretanto, o que observamos é o elogio e a disseminação da ignorância.

Se levarmos em conta que também estamos em um período político-social grave, com retrocessos em várias áreas, é assustador observar como o menosprezo à cultura é imenso, para não falar dos constantes ataques à liberdade de expressão, opinião e de imprensa, em um caldo repleto de preconceito e mesmo de ódio.

Fica difícil fugir do pessimismo generalizado, e o desalento aumenta quando vemos o horror que são os tais booktubers e também os "musictubers", digamos assim.

Não há regra que diga que roqueiros devam ser obrigatoriamente contra o sistema, de esquerda ou favor disso ou daquilo. Mas quando músico usa rede social para propagar preconceito, ódio e restrição de direitos de qualquer tipo (em especial as comportamentais), colidindo frontalmente coim os ideais libertários do rock, é sinal de que patologia é muito grave e que doença se alastrou de forma quase fatal pela sociedade.

 

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

A era do elogio e da valorização da ignorância - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
Contato: contato@combaterock.com.br

Mais Posts