Legado de Aretha Franklin: Shemekia Copeland e Mahalia Barnes arrasam
Combate Rock
04/09/2018 07h00
Marcelo Moreira
Trágica coincidência ou uma ponta de esperança para levar adiante o legado? No mês em que a rainha Aretha Franklin morreu, duas "discípulas", chamemos assim, mostram que a aprenderam direitinho o caminho e mostram qualidade de sobra para orgulhar a madrinha que se foi.
Shemekia Copeland não é uma veterana, mas seu novo álbum, "America's Child", o seu oitavo, transborda densidade, emoção, interpretação soberba e um mundo de sensações que há muito não se via no blues-soul feminino norte-americano. Aos 39 anos de idade, ela já carrega uma imensa bagagem cultural e de luta – afinal, é filha do gigante do blues Johnny Copeland.
Parece que, instintivamente, ela sabia que a gigante Aretha estava nos deixando. Carregado de sentimento e de blues do fundo da alma, o novo álbum reúne aquilo que se esperava de uma cantora que impressionou desde sempre: alma em cada estrofe, em cada palavra, em cada nota.
Conectada com a atualidade, Shemekia resgata a verve tradicionalista do gospel, do soul e do blues rural, misturando tudo com um tempero country e rhythm & blues. O resultado é primoroso.
A própria capa já é um recado contundente àqueles que insistem na divisão e no ódio. Será que somos todos americanos, questiona a mensagem com a garotinha negra envolta na bandeira dos Estados Unidos.
A mistura do blues tradicional com outras formas de expressão americanas é um tributo a todos os artistas que se posicionam, que metem o bedelho para que os sagrados direitos civis não sejam vilipendiados em tempos trumpistas tenebrosos. É o que ela brada em "Americans" e "The Wrong Idea".
"In the Blood of the Blues" é outra patada em forma de poesia e lirismo, com a cantora reafirmando a sua cultura e seus laços com o país. "Ain't Gona Time for Hate" é mais contundente, embora genérico. É uma música corajosa, que reafirma o seu compromisso com a diversidade e com a igualdade.
São canções fortes, de apelo emocional, mas nada que soe fácil ou comercial. As guitarras aqui aparecem com fluência, mas não são determinantes. No resto do álbum, temos uma profusão de metais e violões com timbres maravilhosos. É o todo servindo de fio condutor para ressaltar o tom confessional e emocional de uma voz privilegiada.
"Would You Take My Blood" é pungente como uma prece desesperada, pontuada por uma guitarra acústica graciosa e um baixo marcante e certeiro.
"Promised Myself" é um lamento doloroso em que o piano lancinante esfarela a alma, enquanto que a sincera "I'm Not Like Everybody Else" não economiza na contundência e na emoção.
Shemekia Copeland reforça a aquilo que encontrou nos últimos anos: uma força inapelável e extraordinária para traduzir em sentimento a luta e a trajetória de um povo, de uma parcela significativa do povo americano.
Ela empurra a empatia e compreensão para a frente de seu registro, soando desafiadora e forte. "America's Child" não se limita a abordar o tumulto nos Estados Unidos desde a posse de Donald Trump como presidente. O álbum é uma clara declaração de intenções de como o blues moderno deve soar: bem alto, bem forte, bem incômodo.
Diante de tamanha opulência criativa, parecia que não sobraria espaço nessa seara para outra diva moderna. Só que a australiana Mahalia Barnes não concordou com isso.
Aliás, parece até que seu local de origem não passa de um acidente geográfico. É difícil crer que a cantora negra filha de pai de escocês não tenha nascido nos confins da Geórgia ou do Missouri – seu pai é simplesmente Jimmy Barnes, veterano astro do rock e do hard rock da Austrália.
Com talento herdado e vindo do berço, seria natural que a moça, hoje com 36 anos, surfasse em águas mais calmas para se tonar uma diva pop, ao menos em seu país. Mas ela não quis assim – ou, se quis, fez tudo errado, para nossa sorte.
Mahalia ralou muito, trabalhou demais para consolidar uma carreira que não deve nada às musas inglesas do soul que se orgulham do vozeirão, por mais que sejam criticadas por conta das escolhas artísticas e dos pecados na interpretação – Joss Stone é o alvo preferido dessas críticas.
A garota optou pelo caminho mais difícil, que é o de fazer soul e rhythm & blues tradicionais em um mercado que dá preferência para a música repleta de excessos de produção e calcada no rap de musas como Beyoncé e Rihanna. Mahalia optou pelo lado oposto.
Enquanto trabalha nas composições de um novo álbum, ela vê o seu "Ooh Yea – The Betty Davis Songbook" ser reeditado. É um trabalho precioso ao lado da extraordinária banda The Soul Mates e de um amigo recente que conheceu por meio do pai, o guitarrista norte-americano Joe Bonamassa.
Grande nome atual do blues, Bonamassa fez um trabalho estupendo (para variar). Sua guitarra forte e vigorosa casou perfeitamente com o instrumental poderoso da banda de apoio da moça e permeia toda a obra com solos cortantes e de muito bom gosto.
Esse poder de fogo pode ser ouvido em "Nasty Gal" e "In the Meantime", duas poderosas canções que misturam soul e funk de forma inimaginável, assim como no arrasa-quarteirão "He Was a Big Freak" e na incendiária "Walkin' Up the Road".
Fã de Aretha Franklin, ela explicou em entrevista ao jornal "The Daily Telegraph", de Sydney, a opção por viistar o catálogo da diva Betty Davis: "Eu sou fã de Betty Davis há anos. Eu me lembro da primeira vez que ouvi as coisas dela, fiquei viciada! Ela é selvagem, livre, desagradável, cru, funky, intensa, poderosa e sexy. Eu sempre quis fazer um disco que soasse como o que ela estava fazendo."
Sobre os Autores
Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.
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