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Os monstrinhos também amam

Maurício Gaia

27/04/2015 12h25

Amam, consomem, pagam caro, ainda chacoalham a cabeça e choram. Foi-se o tempo dos metaleiros caras durões

Por Juliana Damasceno* – Especial para o Combate Rock

Quando a gente resolveu fazer a vida juntos, prometi que estaria ao lado dele na saúde e na doença. Apenas me esqueci, no momento empolgante do "sim", da maior das pré-existentes que ele levava consigo e que nenhum plano de saúde cobriria: o Black Sabbath.

Também não planejei que isso acarretaria, no futuro, assistir a todas as apresentações do Ozzy e sua turma no Brasil, sempre que isso fosse possível. Taí então o motivo pelo qual eu, amante do rock inglês e dos sons mais alternativos, fui me meter numa fila gigante no último e gelado sábado (25), morrendo de gripe.

Era bem fácil me encontrar, inclusive, meu disfarce era péssimo: não estava toda de preto, minha camiseta não tinha nenhuma descrição de roteiro de turnê, não usava bandana na cabeça, nem pulseira de cravos, anel de caveirinha ou coisa que o valha.

Perdemos parte dos shows do dia por compromissos particulares, mas às 18h estávamos lá, quase firmes, quase fortes, na porta do Clube Esperia – sim, era tanta gente que a espera vinha desde o portão 19 do Sambódromo do Anhembi, atravessava a Avenida Santos Dumont inteira, dava meia volta na praça Campo de Bagatelle, tomava uma parte da Ponte das Bandeiras e dobrava paralelamente até a Marginal Tietê.

E a cada minuto ali, vendo gente circular, me sentia cada vez mais em 1992, quando a grande sensação do colégio era deixar a cabeleira crescer rebeldemente até o meio das costas. Adoradores de Lemmy, Rob e Ozzy circulavam entre os pelo menos 50 ambulantes que cruzamos até chegar, quase uma hora depois, ao portão de entrada. Tinha desde vendedor de tequila com bandeja até motoboy de pizzaria delivery desfazendo as redondas dos clientes e vendendo em pedaços.

Ainda na fila, que até andou rápido – em determinada hora, cansaram de controlar as entradas porque temiam uma confusão -, falávamos do desrespeito com o público mais velho que acompanha os shows de roqueiros sexagenários. Duas mulheres, devidamente paramentadas de groupies atrás de nós, reclamaram: "Pô, o que vocês têm contra roqueiros cinquentões?". Explicamos que, muito em breve, também chegaremos lá. Apenas que uma fila com garoa não deveria fazer bem à turma mais madura. Elas riram e ele, querendo ser agradável, emendou: "Ela está aqui só por amor, já fui até em Los Hermanos com ela". A frase reverberou como a melhor piada dos últimos tempos e todos riram da minha cara sonoramente.

Antes de entrar, mais perto do palco, uma horda de metaleiros superproduzidos sem ingresso chacoalhava a cabeça descontroladamente nas calçadas, achando que o seu Deus Lemmy estava no palco. Mal sabiam eles que era o pobre do Andreas Kisser fazendo um cosplay de Motorhead pra botar panos quentes na desidratação do ídolo, que deixou a galera na mão. Galera revoltada aliás, pois a quantidade de fãs dos caras era infinitamente maior do que de qualquer outra banda. Foi frustrante para quem tanto esperou.

E quando finalmente consigo entrar, descubro um mundo completamente diferente do que imaginei. Um verdadeiro shopping hipster recepcionava os "caras durões" do metal. Tinha truck de vinis, uma DJ mixando velhos clássicos do rock indie (sim, ela tocava Smiths, Joy Division, Pretenders), uma feira do Mercado Mundo Mix que vendia bugigangas, artigos relacionados e tinha até uma barbearia (?!) e, pra completar, uma área de comida gourmet lotada. Foi um choque.

Péra aí! Área Gourmet???? (foto: Juliana Damasceno)

Entre o buraco do "falso" Motorhead e a entrada do Judas Priest, encontramos um amigo, arrasado, uniformizado de Lemmy. Deixou a filha pequena em pleno sábado e não viu nada. Tratou de afogar as mágoas em cigarros e cerveja, muita cerveja, comprada com suas fichas de "monsters dinheirinhos".

Quando Rob Halford finalmente subiu ao palco, a multidão que circulava tratou de se concentrar mais para frente e nós, já cansados dos tumultos dos festivais, ficamos mesmo é perto das barracas de comida para um lanchinho (uma pizza brotinho da Domino's, pela bagatela de R$ 18). O som do Anhembi é, invariavelmente, uma droga. Então a gente se contentou em ver parte do show de longe e eu, especialmente, me concentrei em observar os tipos e movimentos.

E como é divertido. Famílias inteiras cantando junto com os filhos pequenos, adolescentes, numa legítima tentativa de introduzir o metal clássico, de raiz, desde já, à vida deles. Certamente eles não entenderam os gritos agudos do careca em "Metal God", nem por que tão alegres estavam seus pais pulando em "Living After Midnight", mas participaram até. E enquanto eles acompanhavam, colocando e tirando capa de chuva do corpo – dependendo da água que caía e parava -, fui comprar o "Time's Up", do Living Colour na tal truck de discos (estava barato e eu namorava há tempos).

Por fim, encontramos dois amigos queridíssimos e a espera pelo Ozzy ficou mais amena. Um deles, inclusive, foi só para isso, depois de um exaustivo torneio de futebol que durou todo o sábado. E quem se lembra de cansaço, gripe ou estranheza do ambiente quando o velhinho aparece, finalmente? Até eu me esqueci.

"Bark at the Moon", "Mr. Crowley", "I Don't Know". Um moço na minha frente, com uma camiseta com as inscrições "Kids love Satan" também me garantiu risadas. "Fairies Wear Boots", "Suicide Solution" e o meu amor, emocionado, me explicou a história de um menino que se matou ao som dessa música e cuja família processou o cantor. "Road to Nowhere", finalmente "War Pigs" e uma turma de grisalhos, ao nosso lado, chorou feito criança, abraçados.

"Crazy Train" e "Paranoid" encerraram a minha saga gelada do sábado, com um Ozzy um tanto desafinado, sem alcançar algumas notas, mas muito, muito disposto, gente boa, com seu balde automatizado de água na galera (agora é um jato e brincamos entre nós sobre a multa que ele tomaria por desperdício, ao final do espetáculo, por total desconhecimento do racionamento). Um dos nossos amigos, inclusive, gritou "chupa, pista vip", já que tomar uma metralhadora de água nas fuças, com aquele frio, não deve ter sido das experiências mais agradáveis.

Eu poderia ter achado tudo muito barulhento, com guitarra e berros demais, pouco contrabaixo. Poderia ter reclamado da chuva, do mau tempo, dos preços, dos tipos estranhos. Até poderia achar que só um R.E.M. ou um Flaming Lips no palco salvariam minha noite. Mas aquela história da doença, lá do começo desta história, não escolhe seus contagiados.

O delírio coletivo e a alegria no rosto de crianças, jovens, velhos tendo a música, seja ela qual for, como objetivo, fizeram meu dia, minha noite, muito melhores. E os olhos cheios de lágrimas dele, que sempre acha que verá seu ídolo pela última vez, me deixaram plenamente satisfeita e feliz.

São monstrinhos, sim. "Adoradores de satã", sim. Mas sensíveis e amáveis pra caramba.

*Juliana Damasceno é jornalista e, entre tantas outras atividades, produz o ótimo podcast Som no Blog.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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