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Hélcio Aguirra, o mago dos timbres e do som poderoso

Combate Rock

22/01/2015 06h26

Marcelo Moreira

FOTO: DIVULGAÇÃO

Hélcio Aguirra perseguiu o timbre perfeito por toda a sua longa carreira musical. Detalhista, perfeccionista e hiperativo, era capaz de ficar horas à frente de um amplificador até buscar o acorde necessário e som imaginado. Por um tempo divertia os amigos e companheiros de banda com sua obsessão, mas muitas vezes incomodada e irritava. Mas ninguém ousava reclamar ou boquejar. "Gênio pensando e trabalhando", costumava brincar o vocalista Catalau.

A alma e o coração do Golpe de Estado, uma das grandes bandas de todos os tempos no Brasil, morreu há um ano, dormindo, traído pelo coração, justamente quando o Golpe vivia a sua melhor fase desde os anos 80, com formação consolidada e entusiasmada com o mais recente álbum, "Direto do Fronte".

Sua morte aos 56 anos chocou a comunidade musical porque Aguirra era um dos mais queridos personagens do rock. Encantava por sua inteligência, simplicidade, humildade e solidariedade, mesmo em suas eventuais rabugices e momentos de pavio curto – às vezes o sangue ítalo-espanhol subia…

Os timbres roqueiros paulistanos ficaram órfão daquele que mais os perseguiu de forma obsessiva – não é à toa que se tornou um dos maiores peritos em amplificação e amplificadores do Brasil, dando consultoria até no exterior. Aguirra brincava com o instrumento, encontrava atalhos, tirava soluções do nada e ajeitava tudo. "Era um produtor e tanto. Tinha um ouvido excelente e poderia se tornar um monstro nas mesas de gravação se tivesse se dedicado, mas ele gostava mesmo era do palco. Mexer apenas nos botões não era suficiente para ele", relembra o amigo Dino Linardi, cantor do Golpe desde 2010.

De forma discreta, o guitarrista foi levando a vida em meio às turbulências do mercado brasileiro e à progressiva perda de interesse do público pelo hard rock e pelo rock pesado em geral em nossas terras. Ele ria meio sem graça quando era chamado de "lenda do rock". "Eu sei que isso deveria ser um elogio, mas quando ouço que sou uma 'lenda' tenho a nítidas sensação de que estou sendo enterrado antes da hora", disse uma vez em uma roda de amigos durante um jantar em um restaurante do ABC Paulista.

Nada mais longe da verdade. O amigo de todas horas, prestativo, persuasivo e sincero nunca ligou para rótulos. queria era tocar e oferecer os melhores amplificadores para seus muitos clientes. Não se contentava com pouco, por mais que fosse pouco o que tivesse para o momento. O possível nunca era suficiente. E foi assim até o fim.

Batalhando e arregaçando as mangas 

O auditório Adoniran Barbosa, para variar, estava lotado. Uns dizem que tinha mais de mil pessoas dentro e no entorno do local, que fica dentro do Centro Cultural São Paulo, na zona sul da capital paulista, no bairro do Paraíso. Outros dizem que era exagero, mas que pelo menos 700 pessoas se espremeram para ver mais uma apresentação daquela banda que era única no Brasil: primeiro, por ter sobrevivido à primeira leva do heavy metal brasileiro verdadeiro, na primeira metade dos anos 80; segundo, por ser a única com coragem por fazer hard rock – e muito bem feito – em uma época em que se valorizava apenas o pop rock ou as vertentes mais extremas do metal.

Apesar do tempo frio naquele final de agosto, o calor era insuportável no auditório, que tremeu quando o quarteto Golpe de Estado entrou para tocar. Os músicos estavam visivelmente assustados com tanta gente, mas também empolgados. O baixista Nelson Brito tentou se manter impassível, mas tinha dificuldade de ouvir o que a banda tocava. Catalau (vocais) e o monstro Paulo Zinner (bateria) logo entraram no clima e tocaram fogo no ambiente.

Mas foi o exímio guitarrista Hélcio Aguirra, então com passagem lendária pelo Harppia ao lado do também lendário Jack Santiago, que conduziu o trem aparentemente desgovernado do rock pesado em português do Golpe. Não curtia muito ser chamado de "guitar hero", mas naquela tarde/noite de inverno do longínquo ano de 1987, subiu pelas paredes e mostrou todo o virtuosismo e a classe, com seu timbre cristalino e seus solos afiados e estratégicos.

Muita gente o criticava por errar demais ao vivo, mesmo naquele show do Centro Cultural São Paulo, mas o fato é que nunca uma música do Golpe era executada da mesma maneira, na mesma tradição de gente fraca com Pete Townshend (The Who), Jimmy Page (Led Zeppelin) e muito outros heróis da guitarra dos anos 60 e 70.

Depois da destruição e da ovação geral com o show de quase 80 minutos, a banda sumiu do palco e a multidão foi embora feliz naquela tarde invernal de domingo de 1987. E eis que uns perdidos resolveram ficar até que as luzes se apagassem no centro cultural, e percebem que o grande guitar hero volta ao palco, quase totalmente escuro, para ajudar os companheiros e o único roadie a desmontar e embalar o equipamento.

Os perdidos, meia dúzia de adolescentes roqueiros, não acreditam: o herói desmonta e embala sua própria guitarra. Em silêncio, os garotos invadem o auditório e, sem pedir autorização, começam a enrolar fios e desmontar pedais de efeitos, para espanto de Aguirra. Já na avenida Vergueiro, a banda e os fãs ficaram quase duas horas batendo papo e tomando cerveja, na calçada.

A extrema timidez de Hélcio Aguirra, com sua voz baixa e serena, nunca foi impedimento para detonar no palco por quase 30 anos liderando o Golpe de Estado e outros cinco com outras bandas, sendo a principal o já citado Harppia. Humilde e leal, sempre fez questão de falar "nós" em vez de "eu", mesmo quando dava entrevista para revistas especializadas em guitarra e equipamentos de som.

Mesmo quando o Golpe se tornou "quase" grande, entre 1987 e 1990, era o primeiro a jogar água fria nas ilusões a respeito dos atalhos para o sucesso. "Legal nossa música tocar no rádio e estarmos em uma grande gravadora, mas enquanto a coisa não virar, seguimos no underground carregando nossas coisas e correndo atrás como sempre para conseguir gravar um álbum."

O Golpe de Estado entrou com tudo no palco ensolarado do Parque Salvador Arena, em São Bernardo, no final de julho de 2013; Aguirra está à direita, com, a guitarra vermelha (FOTO: MARCELO MOREIRA)

O megassucesso chegou perto, mas não veio. E Catalau se foi, esvaído pelos excessos da vida roqueira, ainda que underground, para depois se reabilitar e se tornar pastor evangélico e cantor gospel. Paulo Zinner, um dos monstros da bateria brasileira de rock e blues, tentou se garantir em jornada dupla com, o Golpe e com a banda solo de Rita Lee, com quem tocou por mais de uma década, optando por deixar os antigos amigos e embarcar em projetos de bandas cover e as cada vez mais esporádicas apresentações da vovó do rock.

As coisas nunca foram fáceis para Aguirra, mas os anos 90 colocaram enormes obstáculos na carreira do Golpe do Estado, que então se tornou uma banda bissexta ao vivo, totalmente fora da mídia e penando para estabilizar a formação com algum vocalista – entre outros passaram pelos microfones Kiko Muller e Rogério Fernandes.

Para manter a chama viva, Aguirra e o parceiro de sempre Nelson Brito se viravam como podiam para arrumar lugar para tocar, compor e conseguir condições mínimas e dignas para gravar álbuns. Em paralelo, o guitarrista abraçou a vida empresarial ao se dedicar ao que mais sabia na vida: tocar guitarra e reparar equipamentos. Para surpresa do próprio, rapidamente se tornou um dos maiores especialistas em amplificadores do país, sendo que sua empresa virou referência nacional e internacional. O rock às vezes acertava por vias tortas e muito erradas, costumava dizer outro grande amigo e guitarrista, Wander Taffo, morto em 2008.

Retorno irado e sedento

Se era desconfortável ser rotulado de herói da guitarra, mesmo que fosse verdade, ainda que no underground e sem sucesso estrondoso, Hélcio Aguirra nunca escondia um leve sorriso de satisfação quando ouvia que era referência na guitarra nacional de rock e blues. Nas escolas, como o prestigiado EGT, de São Paulo, fundado pelo amigo Taffo, seu nome sempre aparecia no topo e na língua dos ávidos aprendizes, deixando para trás ases do pop rock, como Edgard Scandurra (outro gênio roqueiro, tão importante quando o mestre do Golpe), Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso) e Tony Belloto (Titãs), por exemplo.

"Não há maior reconhecimento para um músico do que isso. É mais importante do que disco de ouro, vendas enormes e todo o que vem depois", disse o guitarrista em recente entrevista ao Combate Rock. "Quem se lembra hoje do RPM?", alguém berrou no camarim improvisado de um parque municipal de São Bernardo do Campo (ABC, Grande São Paulo). Na hora Hélcio se virou e, com semblante sério, repreendeu o autor da pergunta apenas com o olhar. "Respeito é fundamental em nossa área. O RPM subiu e caiu rápido, é verdade, mas ninguém vende 1 milhão ou 2 milhões de discos se não tiver algum talento ou qualidade."

E eis que vemos novamente Hélcio Aguirra tocando para casa cheia, 26 anos depois do show lotado do Centro Cultural São Paulo, no Parque Municipal Salvador Arena, em Rudge Ramos, São Bernardo do Campo. Era um show gratuito, dentro de um programa implantado pelo Sesc e pela prefeitura local. Coincidentemente, era inverno, final de julho de 2013, uma tarde de domingo ensolarado, mas com vento forte e frio.

Depois de anos e anos de ostracismo, eis que o álbum "Direto do Fronte", lançado em 2012, ressuscitou a banda para grandes públicos. Aquela apresentação no ABC era parte de uma extensa turnê pelo interior de São Paulo, fato que ajudou a elevar ainda mais as vendas do mais recente CD, o melhor trabalho das banda disparado desde o álbum "O Quarto Golpe", de 1991. E eis que finalmente alguém conseguiu igualar – quando não ultrapassar – as performances do ótimo Catalau: Dino Linardi, cantor e guitarrista, mostrou-se a escolha certa para catalisar a força e a qualidade da música da banda, assim como se encaixou muito bem o elétrico e versátil Roby Pontes na bateria.

Aguirra no primeiro plano, solando primorosamente em São Bernardo no ano passado com o Golpe de Estado: humilde e considerado boa gente dentro do rock nacional (FOTO: MARCELO MOREIRA)

E não é que lá estava de novo Hélcio e seus amigos ajudando a recolher rapidamente os equipamentos, com a ajuda de apenas um roadie – logo em seguida tocariam os gaúchos do Bidê ou Balde. O mestre em nenhum momento pestanejou ao subir ao palco depois do shows ótimo e guardar equipamentos, mesmo aos 55 anos de idade e mais de 35 de carreira. "Isso é o de menos, fiz isso a minha vida inteira. Depois de tocar para mais de 500 pessoas e ser aplaudido de pé, com gente com menos da metade da minha idade curtindo e cantando, tudo fica leve", disse o músico em outra entrevista ao Combate Rock, desta vez durante a gravação do programa de web rádio após a apresentação.

Brito e Aguirra saíram do palco do ABC radiantes com a performance enérgica e com a crianças de dois, três e cinco anos trançando nas pernas de Linardi, realmente curtindo o show. "Tivemos excelentes momentos coma  formação clássica e original, mas sempre ficou claro que havia instabilidade, seja mercadológica ou mesmo musical, éramos ainda jovens e sonhávamos em expandir nosso público e tocar para mais gente. Quase 30 anos depois, maduros e serenos, podemos concluir sem erro: estamos hoje mais sólidos e fortes do que sempre estivemos, com a entrada do Dino e do Roby em 2010. Ali ou a banda acabava ou renascia. A excelente acolhida do novo CD mostrou que estamos em um momento iluminado", declarou o guitarrista realizado, finalizando a gravação do programa para correr e ficar mais de uma hora autografando CDs e camisetas.

E a guitarra referência do rock pesado nacional decidiu encerrar seus trabalhos por aqui no segundo auge de sua carreira, morrendo nesta terça-feira aos 56 anos, em São Paulo. O Golpe de Estado estava cada vez mais requisitado para shows em todo o Brasil, e não apenas para eventos nostálgicos ou específicos para clubes de motociclistas, por exemplo. O grupo voltou bem e com gana de mostrar o rock'n'roll básico sarcástico e irônico que sempre caracterizou o Golpe, sempre guiado pela guitarra elegante e potente de Aguirra. Ele não gostava de ser chamado de guitar hero, mas ficaria bravo, mas não tem jeito: virou lenda

Aguirra (esq.) com os antigos companheiros do Harppia, em 2009, durante gravação de entrevistas e música para o documentário 'Brasil Heavy Metal'; da esq. para a dir., depois de Aguirra, Ricardo Ravache, R. Micka Michaelis (publicitário e diretor do documentário), Tibério Luthier e Jack Santiago (FOTO: BRASIL HEAVY METAL/REPRODUÇÃO)

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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