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Ótimo livro reconstitui os Rolling Stones 'encurralados'

Combate Rock

24/07/2014 07h12

Marcelo Moreira

Uma banda de rock em alta constante, arrogante e contestadora; uma imprensa moralista, revanchista e inescrupulosa; um sistema judiciário corroído, fraudulento e apavorado com as mudanças da sociedade. Eis os ingrediente da história mais nojenta envolvendo a perseguição a artistas de rock – e do entretenimento em geral.

"Encurralados – Os Stones no banco dos Réus", do jornalista inglês Simon Wells (Ed. Madras) é mais um exemplo de bom jornalismo m meio a uma avalanche de ótimos livros/biografias sobre astros do rock que lotam as prateleiras brasileiras desde 2010. Ao lado de "Man on the Run", sobre a vida de Paul McCartney nos anos 70, é o melhor livro-reportagem sobre música (e sem ser biografia) disponível no mercado.

O comportamento extravagante dos roqueiros ingleses e o avanço das drogas na Inglaterra a partir de 1965 deram aos jornais sensacionalistas de Londres – desde sempre os piores e mais abjetos do mundo – e à Scotland Yard, a polícia inglesa, os elementos necessários para iniciar uma incansável perseguição aos artistas em geral na tentativa idiota de zelar pela "moral e bons costumes" da sociedade britânica. Mal sabiam eles que apenas contribuíram para expor a putrefação que dominava a vida inglesa na época – e ajudaram a acelerar as mudanças comportamentais do fim dos anos 60 e começo dos anos 70.

Os Rolling Stones eram o alvo principal. Rebeldes, sensuais e bocudos – ainda que com um pouco de sofisticação, os quinteto caçoava da velha vidinha inglesa e esbofeteava os conservadores com sua promiscuidade, lascívia e completo descomprometimento com o mundo burguês da época – ironicamente, 40 anos depois, Mick Jagger, zilionário, se tornaria um dos baluartes dessa mesma vida burguesa europeia "decadente".

O recrudescimento da perseguição aos artistas coincidiu com a inundação do Reino Unido pelas drogas de todos os tipos a partir de 1963. Os Stones acabaram no centro de toda uma discussão nacional sobre consumo de drogas e comportamento dos jovens, que marcou para sempre a cultura britânica.

O estopim foi uma festa regada a drogas que Keith Richards ofereceu em sua casa em West Sussex, no início de 1967, uma propriedade chamada Redlands. Mick Jagger e Marianne Faithfull eram os convidados de honra, assim como o beatl George Harrison e sua então esposa, Patty Boyd Harrison. Só que a polícia também resolveu comparecer, "estimulada" por jornalistas do jornal News of the World, criando, assim, um lendário embate.

A batida policial gerou um frenesi na mídia, sempre sedenta por detalhes sórdidos, e deu ensejo a um confronto entre os jovens hedonistas representantes da contracultura e o establishment britânico, que tinha como intuito mostrar a força daqueles no poder. No entanto, o resultado foi bem diferente do esperado. O rock venceu, mas não antes correr um sério risco de "satanização" oficial em um país considerado um baluarte da democracia, da liberdade de expressão e de opinião, assim como de comportamento.

Valendo-se de documentos da polícia e do julgamento dos Stones nunca antes publicados, Simon Wells revela o que, de fato, aconteceu na noite da emboscada policial, bem como a extraordinária conspiração forjada para destruir a carreira de Jagger e Richards, além dos artifícios do establishment para tentar abarcar os Beatles e outros astros do rock em sua rede.

Com entrevistas recentes realizadas com alguns dos presentes à festa, advogados, agentes de polícia e testemunhas oculares do caso, Wells mostra que o suposto confronto moral foi, na realidade, um escândalo que envolveu traficantes que forneciam seus serviços a celebridades, gângsteres londrinos, policiais a serviço do sistema e políticos de caráter duvidoso. O texto é sóbrio, bem escrito, mas com um viés interpretativo que contextualiza todas as circunstâncias, tornando a obra um deleite para quem gosta de história do rock e boas reportagens.

E tudo começou por conta de um erro crasso e gigantesco de dois repórteres do News of the World, profissionais especializados em procurar escândalos – daqueles que não hesitam em subornar policiais, autoridades e funcionários das vítimas.

Sempre na mira dos policiais por constantes contravenções, seja por perturbação da ordem pública ou posse de pequenas quantidades de drogas, o guitarrista Brian Jones nunca se importou em tomar os devidos cuidados com a polícia ou a imprensa de baixa qualidade – até porque estava sempre chapado.

E foi um desses momentos chapados, em um pub londrino, que Jones, louco e bêbado, caiu na armadilha dos dois repórteres, que puxaram papo e  incentivaram a falar um monte de bobagens, entre as quais defendendo o uso de entorpecentes e dizendo-se usuário contumaz.

Os repórteres conseguiram o queriam: uma manchete escandalosa envolvendo um ídolo da juventude. Escreveram uma página com a suposta entrevista com um rolling stone admitindo ser usuário de drogas pesadas. O problema é os repórteres eram tão incompetentes que não atentaram para um fato importante: estavam conversando com Brian Jones, mas acharam que era Mick Jagger. E o texto todo tratava Jones como Jagger.

Esse erro ridículo e primário, coisa de estagiário desinformado, desmoralizou o News of the World, que virou motivo de piada. Os dois otários acabaram sendo humilhados pelos próprios Rolling Stones em notas e entrevistas posteriores. O problema é que, mesmo com a desmoralização da publicação, Jagger ficou furioso pelo equívoco que detonava a sua imagem – e, por tabela, a de todos os roqueiros. Resolveu processar o jornal.

Os editores do News of the World tentavam conter os danos da desmoralização e consideraram um insulto o processo de Jagger – ainda que este estivesse coberto de razão. Uma operação de guerra foi armada e virou ponto de honra destruir Jagger e os Stones. Os melhores repórteres do jornal foram destacados para descobrir o maior número de podres dos integrantes, assim como experientes jornalistas free lancer foram contratados.

O esforço deu resultado uma semana depois, quando um repórter conseguiu descobrir a festinha em Redlands. Desde então o que se sabe é que a polícia chegou à propriedade para uma batida policial, pouco depois da saída de George Harrison e da esposa.

Drogas foram ncontradas no bolso de uma jaqueta de Mick Jagger, na de um marchand amigo (Robert Fraser) da banda e na valise de uma figura controversa conhecida como David Schneiderman, canadense sem ocupação definida, mas que sempre conseguia drogas para a turma. Também se tornou clássica a imagem de Marianne Faithfull, então namorada de Jagger, descendo a escada, após um banho, vestida apenas com um tapete chique, no qual se enrolou para ver o que estava acontecendo.

Os Stones em 1965: (FOTO: DIVULGAÇÃO)

As consequências foram funestas. Após a instrução do processo, Jagger, Richards e Fraser foram condenados por um tribunal local a penas que variavam de 6 a 18 meses de prisão, mais pagamento de multa.

Os dois Stones ficaram uma noite na prisão, mas ganharam o direito de responder o direito de responder o processo em liberdade após pagamento de fiança – Fraser não teve a mesma sorte -, ainda que persistissem a acusação de posse de entorpecentes e permissão de uso de drogas na residência – no caso do guitarrista.

A pena rigorosa suscitou um debate público no país sobre a legislação sobre drogas, os limites do Estado e o comportamento da juventude. O conservador e importante diário The Times, ainda hoje o mais prestigioso do Reino Unido, publicou um famoso editorial questionando a severidade da pena aplicada e se o tratamento dispensado aos músico foi justo.

"Será que se eles não fossem famosos e contestadores seriam julgados com tamanha severidade? Pessoas comuns flagradas e julgadas pelos mesmos delitos, com as mesmas quantidades de substâncias, não receberam penas tão duras recentemente", diz o texto do editorial, escrito por jornalista notadamente conservador e crítico do comportamento jovem da época, William Rees-Mogg, um dos chefes do The Times. Conservador sim, mas Mogg era antes de tudo um defensor da legalidade e da coerência política, antes de mais nada. E a perseguição aos Stones era claramente uma sequência absurda de abusos de poder e de liberdade de imprensa.

Simon Wells fez uma pesquisa minuciosa e entrevistou gente que não falava com a imprensa havia décadas. Teve acesso a documentos até então inéditos do processo e reconstituiu as investigações da polícia e da imprensa na época. E sua obra tem uma conclusão importante: está provado que foram jornalistas do News of the World que alertaram e "estimularam" a polícia inglesa fosse a Redlands para o flagrante, naquele dia exata e na hora exata.

A única lacuna da obra, e de todas que se dedicaram ao tema, é a "fonte" dos jornalistas a respeito da festa. Quem abriu o bico aos repórteres que haveria uma festinha regada a drogas naquele final de semana em Redlands? Uma coisa parece clara: tinha de ser algum convidado, com livre acesso aos Stones.

A tese mais provável é que tenha sido o desocupado David Schneiderman, cuja identidade passou até mesmo a ser questionada. Traficante oficial de parte da turma, acabou desaparecendo misteriosamente após a batida policial, mesmo tendo sua pasta cheia de drogas confiscada. Não foi indicado nem processado, e especula-se que no dia seguinte teria fugido para a Irlanda, para depois voltar ao Canadá.

Outra tese: a polícia deliberadamente esperou George Harrison ir embora da festa para dar a batida? Uma fonte não identificada da polícia britânica disse que sim, pois não haveria interesse da Scotland Yard em deter um beatle – os Beatles ainda gozavam de enorme prestígio, ainda eram os queridinhos, ainda que John Lennon começasse a fazer uma presepada atrás da outra.

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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