Blues nacional resiste: 'Goin' to Delta' e 'Harmonica Duo' chegam às lojas
Combate Rock
06/05/2014 06h33
Marcelo Moreira
Um violão, algumas gaitas e uma voz cantando com vontade, ainda que o sotaque esteja bem longe daquele ouvido em Chicago ou no Delta do Mississippi. Os blueseiros nacionais estão se reinventando e apostando no formato acústico e em duos para driblar as dificuldades do mercado e o aparente desinteresse do público por material autoral – ainda que este mesmo público tenha aumentado, de forma tímida, o apoio a artistas que estão ralando há tempos nas metrópoles brasileiras.
Se em 2013 o blues brasileiro ganhou bastante exposição, com novos lançamentos de CDs e um aumento expressivo do público e locais para tocar, por outro lado temos as restrições impostas por donos de bares e restaurantes, bem como de empresários, ao formato banda. Querendo reduzir os custos ao máximo e pagando muito pouco de cachê, esse pessoal obrigou a uma mudança radical nas apresentações: os duos ou apresentações solo predominam, escanteando as bandas para os festivais – e não há festival de blues todos os dias neste país.
Enquanto os próprios músicos não conseguem reverter o quadro, a solução é partir para o acústico em dupla, geralmente com clássicos do gênero no repertório para conseguir aumentar as oportunidades de shows em qualquer lugar. É um trabalho lento, de consolidação de uma nova realidade, antes de efetivamente partir para a execução de músicas próprias e autorais.
A adaptação foi rápida, e as duplas logo se formaram: Igor Prado (guitarra e voz) e Ari Borger (piano), Celso Salim (guitarra e voz) e Rodrigo Mantovani (baixo), Sérgio Duarte (voz, violão e gaita) e o filho Leo (guitarra), Ivan Marcio (gaita, violão e voz) e Roger Gutierrez (violão, guitarra e dobro), Little Will (gaita) e Marcio Scialis (voz, violão e gaita), Vasco Faé e Val Tomato em apresentações solo… somente Adriano Grineberg ainda resiste com seu excelente quarteto.
Na era em que o CD autoral virou cartão de visitas, mais duas ótimas obras de blues chegam às lojas neste momento. "Goin' to Delta" é a primeira cria de Ivan Marcio e Roger Gutierrez, embora o gaitista seja um experiente músico antes mesmo de chegar aos 40 anos de idade – já gravou com Igor Prado Band, Brazilian Blues Bash e tem dois álbuns solo gravados em Chicago com músicos que tocaram com Muddy Waters.
Muito bem gravado no Cakewalking Studios, na zona sul de São Paulo, com coprodução de Edu Gomes e mixagem de Daniel Lanchinho, "Goin' to Delta" mostra uma dupla afiada e inspirada em relação aos arranjos para clássicos como "Crossroads Blues", de Robert Johnson, e "Hoochie Coochie Man", de Muddy Waters, bem como em outra de Waters, "I Can't Be Satisfied". A produção e o lançamento ficaram a cargo de Chico Blues e sua Chico Blues Records, as almas do blues nacional.
Surpreende Roger Gutierrez ao se mostrar totalmente à vontade no dobro, o violão com corpo de aço, instrumento que poucos artistas brasileiros gostam de usar. Sólido e consistente, deixa de lado a sutileza que às vezes predomina em muitas gravações norte-americanas para investir em um lado mais rústico, misturando com inteligência a pegada urbana do blues de Chicago, mais vigorosa, e a batida sulista, mais delicada e harmoniosa.
Ivan Marcio repete aqui o desempenho elogiado de seus dois álbuns solo gravado em Chicago. A voz está mais encorpada, mais solta, duelando com inteligência com a gaita diatônica. "Esse álbum pode ser considerado, de certa forma, como uma sequência dos dois volumes de 'Chicago Blues Sessions', mas a proposta é outra, justamente por se tratar de um duo, o que requereu uma nova abordagem das músicas e dos próprios instrumentos", diz Marcio.
Otimista, mas realista, o gaitista celebra o surgimento de novos locais para tocar blues na Grande São Paulo, como bares em São Bernardo, Interlagos (zona sul de São Paulo) e Vila Carrão (zona leste), ainda que em condições longe das ideais. "Músico tem de tocar em qualquer lugar, manter-se ativo e sem frescura, e no blues isso tem de ser multiplicado. A música hoje é algo que não tem mais o apelo que tinha anos atrás, está cada vez mais difícil ganhar dinheiro e cada um tenta se salvar, mesmo os produtores honestos de shows e os agentes que gostam mesmo do que fazem. O que não dá é tocar de graça. Isso jamais. Ainda assim, vejo com esperança esse novo momento do blues nacional."
Little Will e Marcio Scialis também colocaram no mercado, via Chico Blues Records, "Harmonica Duo", utilizando o mesmo esquema de Marcio e Gutierrez no Cakewalking Studios. A obra tem um viés diferente: também aposta em clássicos do blues – condição quase imprescindível para conseguir algum espaço nos bares e nos circuitos Sesc de festivais e shows -, mas inclui temas próprios, como "My Girl", uma homenagem de Scialis à filha.
"Hamonica Duo" é outra música própria, de autoria da dupla, com uma aula de execução, técnica e arranjos para gaita. Não há como não perceber a versatilidade de Will nos vários temas, despejando todas as suas influências em fraseados certeiros e solos bem arranjados. Apesar de ser um fanático pelo blues, passeia com habilidade e destreza pela MPB, samba, choro, tango e rock, o que confere um colorido espsecial a temas como "Crossover", "Got My Mojo Working" e na animada "Little Boogie".
Como fechamento de ouro para um álbum bem simples, mas muito bem feito, uma canja maravilhosa do convidado especial, o gaitista norte americano Peter "Madcat" Ruth, um dos grandes nomes do instrumento da atualidade no circuito de Chicago. "Jam with Madcat" é uma aula de improviso e de feeling blueseiro na gaita diatônica.
"Não é fácil gravar um álbum de blues no Brasil, e nunca será. 'Harmonica Duo' demorou dois anos para ficar pronto, isso porque é uma produção simples, sem arrojo. E o resultado final ficou plenamente satisfatório, pois conseguimos nos diferenciar de outros músicos, com nosso toque pessoal e versatilidade de repertório e de arranjos", comemora Little Will.
Assim como o amigo Ivan Marcio, Little Will saúda a expansão dos locais para tocar blues, ainda que de forma tímida, em sua opinião. E reclama da falta de valorização dos músicos nacionais em eventos de grande porte no Brasil, como o Best of Blues, que ocorre no final desta semana em São Paulo. "Temos excelentes artistas brasileiros, mas infelizmente nenhum estará presente neste grande festival. Nenhum blueseiro daqui, e o destaque nosso será Marcelo D2, que está a anos-luz do blues." Marcio completa: "Cadê o Blues Etílicos? O Flávio Guimarães? O Adriano Grineberg? o André Christóvam? É triste ver um grande festival sem músicos brasileiros do gênero."
Do Rio de Janeiro vem outra boa obra do gênero, e curiosamente trazendo outro gaitista importante. Jefferson Gonçalves, em meio à divulgação de "Encruzilhada" e Encruzilhada Ao Vivo", seus mais recentes álbuns, encontrou tempo para juntar forças com o guitarrista, violonista e cantor Big Joe Manfra no projeto Blues Etc, que lançou o CD homônimo.
Excelentes músicos e bem relacionados, capricharam no time de convidados: Greg Wilson (guitarra e voz, Blues Etílicos), o onipresente Peter "Madcat" Ruth (gaita), Pedro Quental e Míriam Cohen (vozes) e Sérgio Velasco (bateria), entre outros. Mesclando blues acústico e elétrico, a dupla também privilegiou clássicos do blues e da soul music, mas com criatividade nos arranjos, como na maravilhosa "(Sittin' on) Dock of the Bay", de Otis Redding, que teve interpretação sublime de Míriam.
Os arranjos também são o destaque de "Fishing Blues", "Spoonfull" e no hino "Nobody Jnows You When You're Down and Out". Assim como Little Will, Gonçalves expande os limites ao incorporar várias influências, em especial de várias vertentes da música brasileira, uma de suas especialidades, o que deu um toque de modernidade sem que houvesse descaracterização de temas.
É necessário destacar ainda os novos trabalhos de Sérgio Duarte e da dupla Igor Prado e Ari Borger, que foram lançados neste ano e que serão abordados no texto que será publicado ainda hoje, logo a seguir.
Aproveite e ouça abaixo o programa Combate Rock de web rádio desta semana, que fala sobre o Best of Blues Festival, que terá Jeff Beck e Buddy Guy, entre outros, e entrevistas com Ivan Marcio, Roger Gutierrez e Little Will, com a execução das músicas novas destes artistas.
Sobre os Autores
Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.
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