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Garotos Podres: situação rara no rock, motivo do racha foi ideológico

Combate Rock

21/04/2014 06h37

Marcelo Moreira

Um caso único no Brasil, e provavelmente no mundo: uma banda importante se separa por questões político-ideológicas. Símbolo de uma era movimentada e intensa da música paulistana, os Garotos Podres, banda punk por excelência, rachou em 2012 e desde então as duas partes brigam na Justiça pelo direito de usar o nome que já foi sinônimo de música de protesto e de radicalismo ideológico no campo musical – e que, por isso, preservou por muito tempo a aura de integridade e coerência.

José Rodrigues Júnior, o Mao, e o guitarrista Cacá Saffiotti (ex-Cólera) romperam com Sukata (Michel Stamatopoulos, baixista que também atua como advogado) e Leandro Ferreira (baterista). Essa foi a formação que perdurou por todo o século XXI. A briga ocorreu em junho de 2012, curiosamente na época em que a banda comemorava 30 anos de fundação.

O que pouca gente sabe é que a tensão entre outros integrantes durava pelo menos 25 anos, segundo Mao, que tem 52 anos e é professor universitário de história. "As principais letras são minhas, desde sempre, e procurei implementar minha visão de mundo, que é de esquerda e com foco no social. E faz bastante sentido quer uma banda punk, de protesto, e que surgiu no contexto do fim do regime militar brasileiro, mantivesse essa postura. Para minha decepção, desde muito cedo os outros integrantes manifestaram estranheza e até rejeição às minhas ideias, mas, curiosamente, seguimos em frente", diz o músico, que recebeu a reportagem do Combate Rock na primeira semana de abril em seu apartamento simples e despojado em São Bernardo do Campo (ABC, na Grande São Paulo).

O cantor afirma que a tensão incomodava, assim como as discussões pesadas que havia na banda por conta da questão "ideológica", mas que mesmo assim foi possível levar a carreira do grupo. "Não era confortável, até porque as divergências eram profundas: eu apoiava políticas sociais de esquerda e de defesa dos direitos humanos e outros defendiam a Polícia Militar e sua atuação violenta, que a caracteriza desde sempre, por exemplo. Fico surpreso que a ruptura tenha demorado tanto tempo para ocorrer."

A tensão explodiu há quase três anos, e desde então as duas partes brigam na Justiça pelo direito de usar o nome Garotos Podres. Mao se antecipou e registrou o nome no Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), mas, como o processo de análise e aprovação da marca é lento, Sukata e Leandro rapidamente remontaram o Garotos Podres com outra formação, tendo o veterano Gildo Constantino (ex-Pátria Armada) como vocalista. Após alguns pedidos de entrevista, os integrantes da nova encarnação da banda não haviam respondido ao Combate Rock.

A situação tensa transbordou para fora dos escritórios de advocacia e dos estúdios de ensaio, com troca de acusações pelas redes sociais e palavras pesadas em e-mails. Mao diz ter sido ameaçado de diversas formas em mensagens eletrônicas e que não fica totalmente tranquilo diante da escala de nervosismo que a situação tomou.

"Mesmo conhecendo os dois integrantes que tocaram comigo por muito tempo, não posso relaxar diante das ameaças que tenho recebido, até mesmo em função da falta de respeito por parte do Michel (Sukata), já que convivemos por quase 30 anos na banda e agora parece que tudo o que construímos nada valeu, a julgar pelas atitudes que ele está tendo", reclama o ex-vocalista.

Satânico Dr. Mao e os Espiões Secretos: Mao é o de jaleco branco (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Novo projeto

Apesar de ingressado com o pedido de registro da marca, Mao diz que desde a separação nunca pensou em usar o nome Garotos Podres. Primeiro quer resolver a questão jurídica, e aí sim pretende recuperar a posse da marca e restabelecer os Garotos Podres segundo o que considera o verdadeiro legado. "Por respeito aos fãs, quis preservar o nome e evitar que houvesse mais confusão. Tenho meu projeto paralelo, por enquanto, e, assim que os processos judiciais terminarem, e caso eu consiga recuperar o nome, voltarei a usá-lo."

O Satânico Dr. Mao e os Espiões Secretos já está gravando o seu primeiro álbum, e duas músicas foram disponibilizadas na internet. "Um Grito em Meio à Multidão" e "Repressão Policial" são músicas que DNA inegável: são Garotos Podres puros – e não poderia ser diferente, por conta da performance marcante de Mao e por suas letras de protesto e políticas.

O álbum deve sair após a Copa do Mundo, mas o cantor diz que a banda tem data de validade: caso ganhe o nome na Justiça, Mao transforma o Satânico em Garotos Podres imediatamente. "Em um primeiro momento achei que os Garotos mereciam um enterro digno, um final apropriado para uma carreira legal e marcante de 30 anos. Entretanto, mais do que nunca, preciso recuperar o nome para seguir em frente e desfazer todos os equívocos. A banda que se intitula Garotos Podres hoje não é digna do legado que a banda tem e vai deixar."

Uma coisa que Mao faz questão de frisar é que a briga em torno do nome é de cunho político-ideológica, não envolvendo dinheiro ou possibilidade de ganhos, "até porque nunca ganhamos nada com a banda". Para ele, os Garotos Podres construíram um nome em 30 anos que é respeitado internacionalmente, com posições políticas claras e, por isso admirado por fãs muito mais jovens.

Credibilidade

Inteligente e calmo, o vocalista é uma pessoa bastante articulada e didática, com uma grande preocupação com a mensagem. Por isso insiste na questão da ideologia como motivo maior e mais visível do racha nos Garotos Podres. Quer é tentar evitar que a banda perca a credibilidade que conquistou nos anos 80.  "A convivência ficou impossível, já não havia mais diálogo. Como foi possível que eles suportassem tocar e cantar as minhas músicas, com o teor social e de protesto? Só posso entender isso como comodismo, pois a banda se estabeleceu e tinha uma história, que não dava para ser apagada."

Os argumentos fazem sentido, uma vez que as páginas dos integrantes atuais dos Garotos Podres no Facebook, por exemplo, contêm mensagens de apoio a instituições policiais e elogios a personagens identificados com os militares e partidos de direita, como o deputado federal fluminense Jair Bolsonaro, político que exalta o Exército, que defende o regime militar brasileiro e que brada bem alto suas posições homofóbicas e outras que são pouco simpáticas aos direitos humanos.

Algumas postagens fazem elogios veementes à Polícia Militar paulista, com a defesa da instituição mesmo quando há suspeitas de violência policial que termina não raro em mortes, mesmo quando o suposto bandido está desarmado e detido ou que as acusações contra ele são frágeis e quase inexistentes.

Mao ainda afirma que chegou a ver nos perfis dos ex-amigos até mesmo postagens de grupos que apoiam o integralismo, doutrina política de inspiração fascista que chegou a ter muitos adeptos no Brasil na década de 30 do século passado. "Fico imaginando como pessoas que têm essa visão de mundo e posturas políticas conseguem subir em um palco e cantar as músicas emblemáticas dos Garotos Podres, como 'Papai Noel' e outras com forte crítica social e à violência policial. Pior ainda, como o público vai encarar essa 'mudança' de postura, com gente que é direita cantando mensagens que não acreditam…"

Atual formação dos Garotos Podres, que também atende por Garotos: Gildo é o segundo da esq. para a dir. (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Briga longe de acabar

A expectativa é de que a disputa judicial leve anos para ter uma solução. Enquanto isso o Satânico Dr. Mao e os Espiões Secretos prepara a sua estreia nos palcos com um CD prestes a ser concluído e lançado, tentando retomar o espírito original dos Garotos Podres, nas palavras do ex-vocalista.

Já a atual formação dos Garotos Podres segue fazendo shows desde o começo do ano passado. Em pelo menos um deles houve um tímido protesto de parte da plateia, quando alguns constataram que Gildo substituía Mao. Quando a banda abriu o show de CJ Ramone, em julho de 2013, algumas pessoas ficaram decepcionadas com a formação alterada.

Além de Gildo, Sukata e Leandro "Caverna" Ferreira, integra a banda o guitarrista Tio Denis.  Depois da abertura com "Johnny", Sukata leu um discurso escrito informando que aquele show, em 5 de julho, no Hangar 110, em São Paulo, era o primeiro com a nova formação. Na época, eles se nomearam apenas como Garotos e, no rápido discurso, segundo registrou a revista Roadie Crew, o baixista informou que a página oficial na internet e no Facebook tinham sido tomadas pelo ex-vocalista.

Também declarou que a nova versão da banda é "apolítica e não podia mais dar suporte para sustentação de egos". "O Garotos é nascido e criado na graxa e na fumaça. Vamos para segunda fase."

Tal desfecho da carreira de um ícone do punk rock – e do rock nacional, com um todo – é desolador, justamente pelo que os Garotos Podres representaram na música e no movimento. Ao lado de Ratos de Porão, Inocentes, Cólera, Olho Seco, Ação Direta e muitos outros, o quarteto criado em Mauá, no ABC paulista, foi o contraponto necessário e inteligente à chamada Vanguarda Paulistana, com sua música sofisticada (gente como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e grupo Rumo, entre outros) e ao pop rock nacional, com orientação menos politizada.

Garotos Podres em 1985, posando em um trecho da linha férrea metropolitana, em Mauá (FOTO: DIVULGAÇÃO/ACERVO PESSOAL)

De todas as bandas punks, os Garotos Podres foram os mais politizados e mais radicais, mais ainda que Ratos de Porão e Cólera. O quarteto não só foi o mais politizado como, de longe, o mais engajado em causas sociais e em participações em movimentos vários na sociedade civil. Imaginava-se que tal postura em muito rea reflexo da personalidade inquieta, contestadora e participativa de Mao – ainda que pessoalmente seja educadíssimo em gentil, diferente do insano que sobe ao palco.

Se há um consolo nesta história triste e desagradável, é o fato de que ainda existem artistas que se preocupam com o seu legado e que têm a consciência do que o rock representou e representa em nossa vida. Mao tem as suas razões e pode ou não estar certo, mas teve o mérito de abrir um debate interessante, que muitos poderão achar inútil em pleno século XXI: até que ponto vale brigar pela integridade e pela credibilidade de uma obra artística?


Programa Combate Rock com entrevista com Mao

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Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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