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Avenida Paulista se transforma em corredor cultural, mas amadorismo ainda predomina

Combate Rock

14/08/2017 12h08

Marcelo Moreira

Filippe Dias Trio toca na avenida Paulista (FOTO: MARCELO MOREIRA)

Stroget é a via mais importante da cidade de Copenhague, a capital da Dinamarca. Não é a maior, nem a mais larga, nem a mais movimentada. Sua importância reside no fato de que é o coração de um local que é, provavelmente, menor do que o bairro paulistano de Santana, no zona norte. Na verdade, ela e seu entorno tem essa característica.

Comprido e tortuoso calçadão que corta a parte central de Copenhague, a Stroget reúne tudo o que é possível em termos de cultura, gastronomia, entretenimento e educação, e tudo isso praticamente todos os dias.

Um dos destaques, como era de se esperar, é a enorme quantidade de gente fazendo música pelos cantos – rock, folk, jazz, blues, música latino-americana, samba, MPB, world music em geral. Gente do mundo inteiro trocando experiências e tentando levantar uns trocos.

Já faz algum tempo que a avenida paulista tem um clima de Stroget, desde que foi fechada aos domingos, na gestão Fernando Haddad (PT), para se transformar em um parque de asfalto para o lazer.

O resultado superou qualquer expectativa, calando os críticos que diziam que o Ibirapuera e outros parques municipais já eram suficientes para o lazer e que o fechamento de um importante corredor hospitalar seria danoso para a população.

A avenida Paulista é um grande ponto de lazer e entretenimento atual na cidade de São Paulo, e também é um local ideal para que vire, de fato, uma Stroget paulistana.

No último domingo, 13 de agosto, dia dos pais, era possível ver diversos músicos tocando ao longo da via, em vários pontos, e tocando todo tipo de canção, indo dos ritmos andinos ao rock pesado.

A questão é que ainda falta aquela cultura de arte de rua tão presente em outras metrópoles mundiais. Tudo ainda é muito amador, especialmente na música. Falta a criação de um circuito artístico que permita a apresentação de artistas de vários calibres com trabalho autoral que justifique tocar, ainda que gratuitamente, em espaço tão nobre.

Não se trata de burocratizar (e emperrar) a atividade artística em espaço público. O fato é que o amadorismo impera, com a falta de regras e de uma curadoria que possa aproveitar melhor o espaço para a música e outras artes – além de valorizar o trabalho autoral.

No caso específico da música, dos 12 músicos que tocavam após as 14h no trecho entre a avenida Brigadeiro Luiz Antonio e a rua Augusta, apenas um teve coragem de tocar composições próprias – coragem que levou a um público pequeno, infelizmente.

Uma moça que fazia um show de voz e violão em frente ao Conjunto Nacional decidiu fazer uma letra  em português em cima de "Living on a Prayer", do Bon Jovi, com resultado abaixo da critica, embora tenha atraído ótimo público.

Tirando dois músicos peruanos que tocavam seus instrumentos típicos sobre bases pré-gravadas, todos os outros apostavam em "covers" (versões para hits de grandes artistas brasileiros e estrangeiros).

Teve gente com prestígio que se arriscou a fazer uma apresentação explorando clássicos do blues com música autoral, com bons resultados, como foi o caso do bluesman santista Filippe Dias.

Ora no Parque Trianon, ora na frente da estação Trianon-Masp, Dias e seu trio batem ponto quase todo domingo, por volta das 17h, na avenida Paulista, atraindo um público cada vez maior.

Trecho da Stroget, no centro de Copenhague, na Dinamarca (FOTO: SITE VISITCOPENHAGEN)

De posse de seu primeiro EP, "Borderline", lançado em 2015, o guitarrista e vocalista faz um show descontraído e competente, tornando-se uma atração "fixa" e requisitada – de longe, é o músico que mais gente atraiu para sua apresentação, tocando clássicos do blues como "Pride and Joy" (Stevie Ray Vaughan), "I Don't Need No Doctor" (famosa na versão de Humble Pie), "Spoonful" (de Willie Dixon), "Leave My Girl Alone" (gravada por todos os mestres do blues), deixando as composições próprias para o final.

O bom desempenho de Filippe Dias é a prova de que uma curadoria seria e inteligente pode turbinar a avenida Paulista como polo disseminador de cultura de qualidade e servir de grande vitrine para artistas de qualidade que ainda resistem em aparecer no local – certamente por conta de receio de eventuais regras e fiscalização da Prefeitura de São Paulo. E tudo isso pode ser feito sem afetar o trabalho dos músicos de rua de fato.

Enquanto a gestão Haddad incentivava a ocupação dos espaços públicos pelo povo e pelos artistas, o sucessor, João Doria (PSDB), não tem preocupações em relação a essa questão.

A fracassada Virada Cultural de 2017, confinada em espaços fechados e com muito menos público nas parcas opções oferecidas no centro (com horários restritos e predeterminados), deu o tom da nova administração a respeito da arte de rua – "esse tipo de manifestação causa transtornos para a população e deve ser realizado em locais específicos".

Essa abordagem claramente tira a espontaneidade e o caráter de festa das manifestações artísticas, com a pretensão de moldar e enquadrar a arte de rua a esquemas administrativos rígidos e padronizados, onde a cultura é a última coisa a ser levada em questão.

Dupla toca jazz e blues na Stroget (FOTO: REPRODUÇÃO YOUTUBE)

Por enquanto a avenida Paulista fechada aos domingos não corre risco de acabar, embora haja boatos no local e mesmo entre funcionários da prefeitura de que não estão descartadas "alterações" no atual esquema, sem especificar o que ocorreria – fala-se em restrição do horário (hoje funciona das 9h às 17h) e até mesmo em mudança de local. Reiteradamente, a administração Doria tem negado qualquer mudança, segundo reportagens dos principais jornais da cidade.

Já passou da hora de avenida Paulista ser ocupada com muito mais garra e força pelas culturais, com a exigência da implantação de uma política cultural ampla e diversificada, privilegiando artistas com trabalho autoral, com uma curadoria competente que possa disseminar cultura e educação longe da amarras da burocracia político-administrativa.

O esquema amador e sem direção que existe atualmente na avenida cumpre seu papel, mas só até certo ponto. É uma oportunidade imperdível que, se desperdiçada, será um crime inaceitável contra a cultura.

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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