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André Christóvam, a cara do blues no Brasil - parte 4 - final

Combate Rock

26/10/2014 15h06

Eugênio Martins Júnior – do blog Mannish Blog

André Christovam (FOTO: DIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL/FACEBOOK)

André Christovam (FOTO: DIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL/FACEBOOK)

EM – Se todo mundo elogiava as letras e a música, porque a Heróis do Brasil acabou não dando certo? Ou dando certo em termos?
AC – Cara… tomei uma cantada do diretor da gravadora que queria me levar a uma lua de mel em Roma. Do nada o disco parou de vender. Vendeu 30 mil cópias até o dia que dei o fora nele.

EM – Aproveitando que você está falando isso. Se o Mandinga fez aquele baita sucesso com letras em português, por quê A Touch of Glass?
AC – Sou virginiano e tenho uma visão muito clara daquilo que faço. Demorei cinco anos compondo Mandinga e tive sete meses pra fazer o A Touch of Glass. É impossível. Todas as letras do A Touch foram escritas em uma noite antes de começar por voz no disco.

EM – Por que só sete meses? Foi por pressão da gravadora?
AC – Foi um erro. O Mandinga tinha várias músicas de sucesso. Uma no Rio, uma em São Paulo e outras em outros lugares. Tinha mais um ano de vida. Matamos a duração do Mandinga. Qual é o disco de banda estreante que tem quatro músicas tocando em rádio, Confortável, Genuíno Pedaço de Cristo, So Long Boemia e Dados Chumbados. Tudo o que eu escrevia parecia resto do Mandinga. O tiro que matou a minha criatividade em português foi o Aldir Blanc. Na crítica ao Mandinga no jornal O Globo ou no Jornal do Brasil, não lembro, ele disse: "É um dos discos com as letras mais inteligentes do atual cenário brasileiro". Travei.
Mostrei o disco pra Rita e perguntei o que ela achava e ela disse que achava que eu era um idiota (risos). Eu disse que estava travado. Havia produzido um disco para o Kid, escrito nove letras em 87, dez letras em 89, e tinha seis meses para escrever outras letras. A gente tem de ter história pra viver. Havia acabado de casar e as letras que havia feito eram com mulheres e enroscos do passado. Ela disse que eu tinha de aprender a contar as histórias dos outros.

EM – Até que o A Touch of Glass não teve uma trajetória tão ruim.
AC – Fizemos uma turnê com 97 shows. Conhece alguma banda de blues que teve esse volume? A turnê terminou em Belo Horizonte uma semana depois de fazermos quatro shows nos Estados Unidos, em Chicago. Foi quando conheci o BB Odon. Era o lançamento do Family Style, disco póstumo do Stevie Ray Vaughan. Havia comprado uns cinqüenta CDs de blues na Delmark Records pela manhã. Uns 25 caras dos meus discos estavam no show de noite. Quando acabou o show, atravessei a rua e o Zinner estava sentado na sarjeta. De onde a gente estava dava pra ler o letreiro: "Brazilian blues star. Tonight only. Guess only". Ele estava torcendo a camisa e disse que havia sido o show que melhor me ouviu tocar em 17 anos. Na mesa da minha frente estava o Buddy Guy, Junior Wells, Dr John, Dave Mason. Toquei slide a noite inteira.

EM – Depois veio 2120, primeiro disco brasileiro de blues gravado lá fora, na terra do blues. Como foi que isso aconteceu?
AC – Antes produzi um disco do Golpe de Estado, Nem Polícia, Nem Bandido. Fui quem levou o Golpe para a Eldorado. Era para ter produzido o Kães Vadius, mas eu acabara de produzir um single deles e os caras do Golpe eram meus amigos. O Nelson e o Paulo eram amigos de infância. Eles me apresentaram Filho de Deus e eu disse: "Pára. Isso vai tocar pra caramba, deixa eu produzir". Ganhamos muito dinheiro com isso. O 2120 foi o último disco da história do estúdio da Chess, tombado como patrimônio histórico dois meses depois. Hoje é um museu. A ideia inicial era gravar em Vancouver com o Paul Horn. Ia ficar um mês lá. O Howie Albert havia montado um estúdio em Nashville e também queria gravar comigo. Disse que ia convidar aquele baixista do Toto, o David Hungate. Então ficou essa dúvida. Eu estava querendo gravar um disco acústico, o John Hammond havia me ensinado a tocar Hard Times Killing Floor e viajar para divulgar era mais fácil. Quando estou decidindo sobre as passagens e outras coisas, o Tony Hilgert liga me convidando para gravar no estúdio da Chess porque ele me faria um preço bom. A primeira semana gravei violão, conhecendo o estúdio, saindo pra jantar, trabalhando três a quatro horas por dia. Bem low profile. Em uma segunda-feira estava tomando uma cerveja com o Buddy Guy, estava rolando uma jam e o baterista dele, Jerry Porter, me chamou pra tocar. Tocamos até às quatro da manhã e o Mark Salzman falou que a gente precisava gravar um disco. Esqueceu que estava pagando um hotel pra eu ficar lá. Deixamos para gravar na sexta e no sábado. A jam foi na segunda e na outra segunda o disco estava gravado.

EM – Depois de dois discos bem sucedidos, como foi a recepção no Brasil de 2120?
AC – O BB Odon veio ao Brasil e a TV Cultura fez um especial de uma hora. A merda é que falei para o pessoal da gravadora que estava indo embora do Brasil. Os caras concordaram. A ideia era começar uma carreira internacional, mas aconteceu uma coisa que não esperava. A turnê acabou dia 02 de dezembro e o BB Odon morreu em 21 de dezembro. Aí perdi o chão.

EM – Não haveria condições de continuar sem ele?
AC – Ele era a voz. Para os Estados Unidos eu era bom, mas ele era uma lenda. Havia se retirado após a morte do Earl Hooker, trabalhado por 11 anos no departamento de esgotos de Chicago. Ele era cantor do Earl. Não tem depois disso. Perdi meu pai no dia do meu aniversário e você sabe bem o que é isso. A morte do BB Odon dizimou a minha vida.

EM – Mas o que aconteceu então?
AC – Montei uma banda quinze dias depois. Se não tivesse montado uma banda… na verdade, o Fernando Naylor que estava tocando comigo com o BB Odon indicou uns caras para a gente continuar tocando, o Izal de Oliveira no baixo e o Cláudio Tchernev na bateria. Tinha muita demanda de show. Consegui virar um guitarrista de blues de Chicago, era o diretor musical, o único branco, era a força de composição. Pela primeira vez eu era a grana. Tinha um empresário do Junior Wells que também havia acabado de deixar o Buddy Guy e… o trem passou. A banda durou mais dois anos e o meu casamento acabou.
Lembro que em algum momento de 1995, última vez que esteve no Brasil, o Junior Wells me ligou às quatro da manhã dizendo que havia demitido o guitarrista e queria que eu entrasse na banda dele. Disse que faria o show de sábado com ele, mas ele me queria na banda de verdade. "Quero que você vá comigo para Chicago e cuide da minha banda". Tinha 28 shows agendados e dois músicos que viviam do dinheiro que eu pagava. O que poderia fazer?

EM – O Junior Wells estava em uma boa condição financeira como o Buddy Guy que estava começando a ficar rico com o blues?
AC – Tava bem. Me convidou para morar na casa dele até arrumar um lugar. O Buddy ficou rico, mas quando o conheci era durango. Só tinha muitas guitarras.

EM – Após 25 anos o lançamento de mandinga, como vê a cena hoje?
AC – Não existia, agora existe. Os instrumentistas são excelentes, mas o que estão fazendo com a habilidade deles é patético.

EM – Não entendi. Eles são excelentes, mas o que estão fazendo é patético?!
AC – Talvez, três ou quatro exceções no Brasil inteiro. Grande parte dos músicos brasileiros toca o mesmo repertório. Estou errado? Não têm direcionamento. Quem tem talento não se aprimora porque acha que é melhor do que é. Vou falar dos caras que realmente gosto. Conheci o Marcos Ottaviano há 25 anos quando ele tocava muita guitarra. Hoje ele toca melhor do que qualquer músico de blues americano na minha opinião. Ouve o Flávio Guimarães e ele está cada dia melhor. Vejo o Adriano Grineberg tocar e acho que está procurando caminhos e entregando um bom produto. Vejo o Edu Gomes tocar uma linguagem com frescor que também não vejo nos americanos. Não vejo nenhuma cozinha no Brasil com a competência da americana. Os caras não fizeram a lição de casa. Tem de aprender que o blues tem um jeito de tocar. Tiro a minha banda porque a gente tem um diálogo. E o que toco virou um híbrido tão complexo que não dá pra colocá-los nesse contexto. Principalmente o Fabio Zaganin que está comigo há 16 anos. O que faço não é mais blues. Tem uma brasilidade. E não vejo ninguém tomar uma liberdade com isso. Com a veemência de quem está tocando algo que é seu. É muito difícil dizer "eu te amo" e não ser brega. E é muito fácil dizer "baby I love you", e não dizer nada.

EM – Talvez porque o DNA do blues brasileiro seja classe média?
AC – Ele é branco. Como o blues americano de hoje. E classe média. Onde um menino americano vai comprar uma Strato 63 por trinta mil dólares? Onde vai tocar um Bassman 59? Tocando em bar? Não, papai bancou. É a diferença entre eu em 76 e em 2014. Estudei e ganhei equipamentos bons porque papai podia pagar.

EM – Depois dessa caminhada você não pode dizer que tem um trabalho? A tua história não te legitima? Esses músicos não estão buscando o mesmo caminho que você já buscou?
AC – Então para de copiar! Para de tocar o mesmo repertório. Para de se preocupar com o amplificador do Eric Clapton, o violão do Robert Johnson, o pedal do Robben Ford. Para de imitar a marca do microfone do Little Walter. Vai buscar o porquê de o Little Walter ser o Little Walter. Se O Robert Johnson estivesse vivo provavelmente estaria usando uma guitarra dessas modernas, sem headstock. Por que ele era o mais moderno da época. Quando olho o John Mayer me dá vontade de volitar. Ele é o Eric Clapton de hoje, mas que não cresceu em uma garagem, ele saiu do BBB, cara! Minha crítica não é só ao blues brasileiro. É ao blues americano. Você sabe que blues é uma música que veio dos africanos que usavam essa estrutura musical e melódica pra contar a história da África, os griots. Essa molecada não está contando história nenhuma. Deus do céu, estamos vivendo uma revolução social no Brasil. E não tem um cara de 23 anos que saiu na Paulista no ano passado que vai contar o que ele viu? Genuíno Pedaço do Cristo foi composta porque estava indignado com a CBF que permitiu que roubassem a taça Jules Rimet. Só que em vez de dizer isso diretamente, contei uma história sobre aquela estrutura de poder montada no Rio de Janeiro, do poder da política, do poder do futebol, e que deixaram roubar o maior patrimônio que a gente tinha. E derreteram. Roubaram um pedaço da nossa história, uma coisa preciosa. Me lembro da comoção de 1970.

EM – Você está dizendo que o blues brasileiro sofre de crise de identidade crônica?
AC – É isso. Temos bons guitarristas, baixistas, bateristas, gaitistas e pianistas, mas muito pouca gente tentando contar uma história própria. Não tem onde desenvolver essa arte.

EM – Foi esse o caminho que buscou na pareceria com o Heraldo do Monte?
AC – Ele foi o meu mentor. Era professor dos meus professores. Só cheguei a conclusão de que o Heraldo tocava uma música com origem moura… aí tenho de entrar em questão teórica. A escala que a gente usa pra criar essa música nordestina tem a sétima menor. Uma mixolidia, o quinto grau das escalas do campo harmônico. Isso é genial. Quando você ouve Asa Branca, uma sonoridade africana, do blues, da música nordestina, dos negros que subiram para a Europa e colonizaram os países ibéricos, um pedaço de Portugal, Espanha e Itália. O Heraldo domina isso por natureza e criação. O Joe Pass me disse que o Heraldo era o guitarrista mais interessante que já ouvira tocar.

EM – Qual foi a maior alegria que teve com o blues?
AC – É a hora em que você está tocando e faz o mundo parar. Faz o olho daquela mulher bonita da segunda fila brilhar.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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