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Quando algumas notas musicais confrontam milhares de vidas

Combate Rock

04/04/2020 07h01

Marcelo Moreira

As previsões sombrias a respeito da economia pós-coronavírus me fizeram lembrar do clássico "Ratos e Homens" ("Of Mice and Men"), livro de John Steinbeck que virou filme em 1992 na preciosa direção de Gary Sinise (que também atuou ao lado de John Malkovich e Sherilyn Fenn).

A história narra as desventuras de dois amigos nos anos 30, no interior dos Estados Unidos, em pleno período de depressão econômica.

Desempregados, procurando trabalho intermitente de fazenda em fazenda em troca de migalhas e maltratados pelos fazendeiros, tentam sobreviver à fome, às humilhações e às encrencas involuntárias de um deles, que tem problemas mentais.

O pano de fundo, que na verdade é o personagem principal, a crise e o flagelo que afetou os Estados Unidos e o mundo e que foi um dos ingredientes que ajudou a fomentar o ódio e o fascismo que culminaram na II Guerra Mundial.

A crise do coronavírus teve o poder desorganizar a economia mundial e a nossa vida em apenas três meses, muito mais rápido do que a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, um movimento puramente econômico e especulativo, mas que levou milhares ao suicídio e milhões à fome à pobreza extrema.

FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Diante do pesadelo que tende a piorar, cresce a  pressão dos empresários dos setores gastronômico e cultural para que, de forma irresponsável, encerre-se a quarentena imposta por Estados e municípios para conter a epidemia – decisão acertada e que tem funcionado.

Primeiro veio o terrorismo dos bares, restaurantes, hotéis e operadoras de turismo, que "ameaçam" as estruturas ao divulgar "estimativas" de que 6 milhões de trabalhadores destes setores perderão imediatamente os empregos.

Em seguida, veio a cadeia produtiva da cultura bradar que ao menos 580 mil colaboradores de shows, espetáculos diversos e indústrias relacionadas à cultura ficarão sem serviço até dezembro "se a vida não voltar ao normal ou se o setor não receber 'benefícios' fiscais ou perdão/suspensão/adiamento de dívidas e custos fixos".

Seja por desespero (algo compreensível) ou por motivações ideológicas (algo execrável, principalmente por contra ao apoio ao nocivo presidente da República), muita gente do rock e da música está embarcando neste discurso perigoso e desumano de que a economia está sendo destruída pelas medidas mais ou menos radicais de restrição, distanciamento e isolamento social.

Especialistas são unânimes ao dizer que o pico da epidemia em países como Argentina, Brasil e Estados Unidos será no mês de abril e já se prevê a extensão de medidas de isolamento social, como o fechamento do comércio e de serviços não essenciais, pelo menos até 30 de abril, o que apavora muitos comerciantes.

Donald Trump, presidente norte-americano, antes um opositor das medidas radicais, não descarta que as restrições avancem pelo mês de maio em seu país.

Não é necessário repisar as informações a respeito das consequências econômicas para a economia mundial. Será uma recessão extensa e prolongada em quase todo o mundo, mais profunda que a de 2008, que destruiu países como a Espanha, Portugal e Grécia, por exemplo.

Na Espanha, um dos três países mais afetados pela pandemia, já se especula sobre a evaporação de 900 mil empregos nos próximos meses. Nos Estados Unidos, de 10 milhões a 15 milhões de postos de trabalhos sumiriam – só nos últimos 15 dias foram 9 milhões de pedidos de seguro-desemprego registrados.

Apesar do desespero e da falta de alternativas que a tormenta virótica jogou sobre nossas cabeças, é assustador o tamanho do abismo que se formou (na verdade, se alargou) dentro de um segmento pequeno, mas importante, como a cultura – e mais ainda no mundo do rock.

Fica claro que a solidariedade ali é menor do que a registrada em outras partes da sociedade, com a predominância do ressentimento e da falta de empatia na observação cotidiana do que está acontecendo, a ponto de músicos e produtores exasperados com a falta de atividade ligarem o modo "bem feito" para os donos do plano de saúde Prevent Senior e hospitais Sancta Maggiore, que também são músicos e têm bandas de rock. Tanto a operadora de saúde como a rede de hospitais, especializados em atender a uma população idosa, estão sendo acusados de má gestão e descumprimento de normas sanitárias, tudo ainda sob investigação.

As faltas de união e de colaboração dentro do rock nacional são notórias, mas a polarização política que acirrou ânimos a partir de 2013 levou a situações antes pouco vistas, como o ódio extremo a posições progressistas e apoio a pensamentos execráveis, como censura, erosão de instituições democráticas e defesa intransigente de economia e de lucros ante a uma crise humanitárias de proporções planetárias, que provocam milhares de mortes.

Claro que não é um pensamento exclusivo do meio do rock. Espalhou-se como um vírus tão nojento e nocivo quanto o coronavírus principalmente a partir de 2018, quando o execrável Jair Bolsonaro foi eleito.

O que é aterrador e inacreditável é que a disseminação de tal coisa tenha sido muito maior do que esperávamos dentro do rock e das artes em geral, justamente locais onde a liberdade de expressão devia ser o bem maior a ser preservado, assim como a democracia.

Quando músicos importantes e nomes históricos do rock relativizam a democracia, apoiam a censura por motivos político-ideológicos e valorizam o lucro/faturamento em detrimento da saúde é porque a deformação moral e o fosso ético se aprofundaram de tal forma no setor que pouco sobra de defensável em relação a essa gente.

À medida que a sucessão de barbaridades perpetradas pelo governo irresponsável de Bolsonaro segue em franco progresso, acirra-se cada vez mais o conflito entre a sociedade moderna, informada e esclarecida e o mundo retrógrado e medieval habitado por seres lamentáveis que mente ultraconservadora e do pior tipo de religiosidade que existe, o fundamentalismo e o fanatismo.

Cartaz do Facada Fest

Ver artistas defender o indefensável, atacar a ciência, o conhecimento, a educação e a inteligência, alinhando-se ao que há de mais nojento e abjeto na sociedade brasileira, que é o autoritarismo burro e a burrice congênita do bolsonarismo, é muito mais apavorante do que triste. É a constatação de que a barbárie pode suplantar, em algum momento, a civilização, como ocorreu nos anos 30 do século passado na ascensão do nazismo na Alemanha.

As correntes de solidariedade ainda nos orgulham e transmitem esperança e otimismo a respeito da longa batalha contra o vírus. Vai levar tempo para que a vida volte a ser como antes, como repete sempre o médico Dráuzio Varela.

Essas correntes são o que há de mais precioso em nosso cotidiano atualmente. A música alimenta a alma e alivia muito o sofrimento nestes períodos de confinamento, e será assim por muito mais tempo.

Que assim seja, com a música assumindo um papel legal na linha de frente da guerra, mas sem atentar contra as medidas que preservam e salvam vidas.

Nos piores momentos, naqueles em que qualquer esperança costuma sumir, ratos e homens costumam lutar para sobreviver e nem sempre surgem atos bonitos, mas a vida costuma separar quem são uns e quem são outros. A humanidade sai fortalecida quando a solidariedade prevalece, espantando os ratos e os vermes. Que o nosso mundo do rock não nos decepcione.

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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