Topo

Distanciamento social muito além do vírus é um caminho sem volta

Combate Rock

03/04/2020 06h57

Marcelo Moreira

O que a vida separa o rock une, no palco e fora dele. Não foram poucos os artistas que acreditaram em tais frases ao longo de mais de 50 anos desde que o gênero musical assumiu a linha de frente ao encampar causas diversas, protestos variados e o desejo de um mundo melhor – ou menos ruim, para citar um iconoclasta como Ozzy Osbourne, vocalista do Black Sabbath.

Cm o progressivo esgarçamento do tecido social no Ocidente – e depois no Leste Europeu pós-domínio soviético – ao longo das décadas, eis que a empatia some aos poucos e os negócios predominam tendo como mantra os pensamentos egoístas e egocêntricos dos yuppies e dos "bem-sucedidos" de sempre.

A mensagem? Ora, a mensagem…

A música ficou grátis no século XXI, a cultura se desvalorizou, os sonhos acabaram e os pesadelos nos assombram diariamente há muitos anos. Sobraram um pouco de hedonismo e luxúria no rap e no chamado rhythm and blues moderno, com conteúdo quase sempre dispensável e sofrível, com algumas honrosas exceções.

E então o rock se tornou marginal, coisa de nicho, coisa undeground, fora de qualquer lista de mais ouvidas e ou mais vendidas há muito tempo.

Show do Golpe do Estado em março, em São Bernardo do Campo: raro momento recente de coexistência pacífica de tribos roqueiras (FOTO: MARCELO MOREIRA)

Vítima maior entre as vítimas da destruição do mercado fonográfico e das gravadoras, saudoso e um mundo idílico e bilionário dos anos 90, o gênero mostra vigor aqui e ali, mas totalmente desconfortável com a posição de coadjuvante.

As mudanças sociais em várias partes do mundo avançam, nem sempre para o bem, e boa parte do mundo cultural e do entretenimento está com dificuldade para superar esse torpor. Certamente Roger Waters, ex-baixista do Pink Floyd, voz ativa de ativista, deve sentir muito a falta dos então moleques do Clash e de outros impertinentes que adoravam chutar canelas por aí.

Mas a questão aqui é outra e concernente ao rock brasileiro do século XXI e que deságua nas diversas crises sucessivas que afetam a nossa sociedade: a vida separa de forma hostil e o rock – ou o que sobrou dele – não esforça para unir. Na verdade, se tornou um microcampo de batalha odioso e beligerante que afasta ainda mais turmas que pouco se comunicavam.

As tribos brasileiras sempre foram bem definidas e faziam questão de manter a distância nos anos 80. O sectarismo diminuiu na década seguinte e houve uma boa onda de respeito. Headbangers entendiam a importância da existência de um pop comercial vendável e de um rock nacional que tinha acesso a outras praias. Era bom para todo mundo e sobrava espaço até para o underground punk – não é por outra razão que Ratos de Porão e Cólera ganharam enorme respeito.

De outro lado, mesmo quem não suportava o metal extremo reconhecia a importância do sucesso internacional de um Sepultura ou de um Angra, colocando o rock brasileiro no ranking alto de vendagens e de crítica.

E aí veio o novo século, novas formas de comunicação, novos modelos de negócio e novos tipos de ressentimento. Com tudo isso, a empatia se perdeu pelo caminho.

A política e os negócios, como sempre, tiveram o poder de separar quem e o que quer que seja, e o mundo da cultura, das artes e do entretenimento foi soterrado primeiro pela indiferença, depois pela desilusão, seguida pelo ressentimento e desembocando no ódio alicerçado na polarização política e no radicalismo social.

Nunca foi só música, só rock, só show. Sempre teve muita coisa por trás de um movimento cultural que mudou a humanidade e a cultura pop ocidental como nenhum outro.

Telão de Roger Waters em show de São Paulo, ocorrido em 2018 (FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE)

Próximo dos 70 anos de existência, o rock sofreu muita transformação, só que ainda conseguia manter a duras penas ou mesmo que de forma cosmética a aura de juventude contestadora e de guardião da liberdade expressão e de pensamento.

Quando foi que a coisa desandou no Brasil a ponto de músicos importantes e parte expressiva dos fãs apoiarem políticos que são inimigos de tudo o que o rock significou.

Como foi possível que músicos cabeludos e que sempre posaram de radicais e encrenqueiros embarcassem em um barco furadíssimo em que osa gurus políticos e filosóficos pregam restrições a todo tipo de liberdade?

Quando foi que essa gente passou a dispensar a informação e o conhecimento para mergulhar no fundamentalismo religioso, no charlatanismo e na completa impostura política, para não falar na desonestidade intelectual?

Tudo isso coincide com a apatia e indolência que domina o meio das artes por aqui, e muito mais o rock, que deixou de dialogar com a juventude e passou a ser identificado como manifestação de uma classe média fossilizada e ressentida, que não tolerou a tímida redução da desigualdade social e econômica ocorridas nos anos do PT no poder e que não suportou ter de apertas os cintos em novo momento de crise, coisa tão cíclica na vida brasileira.

Com os seguidos fracassos dos projetos ultraneoliberais que vieram após o golpe que apeou Dilma Rousseff (PT) do poder, o ressentimento piorou em parcela expressiva da população, que foi além da classe média tradicional e contaminou ma galera pobre, mas que se beneficiou da redução da desigualdade.

Sentiram-se traídos? Pouco importa. A guinada para o radicalismo político e econômico pode até ter uma dezena de explicações, embora nenhuma justificativa para apoiar aventuras autoritárias de inspiração fascista.

E o ressentimento que polarizou o país contaminou de tal forma a sociedade que varreu o bom senso em todos os segmentos, a ponto de ameaçar a democracia e a liberdade de expressão.

Reprodução da capa da edição brasileira do livro "Liberdade de Expressão: Dez Princípios para Um Mundo Interligado", de Timothy Garton Ash

É isso o que ocorreu em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, que é nefasto, incapaz, incompetente, preconceituoso, despreparado, misógino, racista, violento, fascista e muito afeito a qualquer tipo de discriminação. Representa o que de pior a humanidade produziu.

Como é possível que esse tipo de ideologia atrasada e medieval tenha ganho adeptos entre os roqueiros de todos os subgêneros.

Como é possível que alguém que ame um gênero artístico-musical que tem uma "ideologia libertária" seja capaz de apoiar pensamentos e propostas que almejem a censura e fortes restrições a todo tipo de liberdade?s

As perspectivas de algum dia haver uma pacificação ou uma reaproximação entre os extremos polarizados no Brasil e em outras partes do mundo são remotas.

Nos ambientes roqueiros do Brasil isso é mais profundo e arraigado, e de forma dolorosa. O rompimento parece ser irremediável nos grupos de amigos.

Se as pessoas tendem, no médio prazo, a voltar a frequentar mesas de bares e arquibancadas de futebol ao lado de amigos politicamente incompatíveis, no rock isso será cada vez menos possível.

As redes sociais, principalmente, abriram um fosso gigantesco entre antigos amigos e em grupos acostumados a dividir as pistas e arquibancadas de festivais de rock e casas noturnas.

Os carimbos de "fascistas" e "esquerdopatas/petistas ladrões" ficaram de tal forma marcados nas testas de roqueiros que dificilmente haverá algum tipo de consenso ou tolerância.

Em último caso, não é o fim do mundo. Talvez fosse apenas questão de tempo que tais fissuras aparecessem, e não só entre as várias comunidades do rock brasileiro, mas em muitos outros ambientes da sociedade brasileira.

Inevitável? Talvez. Muita gente vê o lado positivo diante da conflagração política e ideológica, polis conseguiu identificar aquele parente idiota ou amigo estúpido como um ser execrável que não merece consideração por se revelar fascista, preconceituoso, racista e admirador de ditaduras, torturadores e censura, além de relativizar as "tais liberdades civis".

É aquela gente que odeia pobre (mesmo sendo tão ou mais pobre), odeia negros, odeia homossexuais e vibra quando bandidos e supostos bandidos são mortos ou assassinados pela polícia.

Na maioria dos casos, não sabíamos que essa gente era altamente tóxica. O fosso aberto pela polarização política – e agravada pela pandemia do coronavírus – nos fez um favor ao extirpar esse pessoal de nossas vidas esses seres asquerosos que defendem o indefensável e que desvalorizam a vida praticando a pior das intolerâncias.

É um alívio perceber que não teremos mais o desprazer de encontrar esses seres execráveis em festas de casamento, de aniversário e nas festas de fim de ano. E muito menos de ter essas companhias deploráveis ao lado em momentos prazerosos como nas pistas de shows legais ou festivais altamente esperados.

União sempre foi um comportamento fartamente ignorado entre as tribos roqueiras no Brasil, o que explica em parte as condições em que o rock se encontra por aqui – marginalizado, incompreendido e menosprezado, até certo ponto.

Diante de uma altamente improvável reconciliação geral, que saibamos aproveitar a limpeza de nosso ambiente sem perder o foco da resistência aos ataques à liberdade de expressão, à educação e ao conhecimento.

O duro e saber que a resistência, infelizmente, tem de começar dentro do próprio rock, que está bastante contaminado por gente que não se importa com governos de inspiração fascista e autoritária e com a defesa da liberdade de expressão.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
Contato: contato@combaterock.com.br

Blog Combate Rock