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Valorizar legado e agradecer são o maior tributo possível a quem envelhece

Combate Rock

29/03/2020 11h57

O começo da quarentena por conta do covid-19-coronavírus foi um convite para fuçar no escritório-estúdio. Livros ainda não lidos, DVDs com shows legais ainda lacrados e milhares de CDs há muito encostados, pedindo para ser resgatados do limbo. "John Mayall's Bluesbreakers feat. Eric Clapton", de 1965, era um deles; um outro era "Eric Clapton – Live at Rainbow 1973", show organizado por Pete Townshend e Ronnie Lane, então nos Faces, para tirar o grande guitarrista do autoexílio, onde se entupia de drogas em sua imensa casa de campo perto de Londres. Mayall fará 87 anos em 2020 e o nome fundamental dos primórdios do blues e do rock britânico. Blues e rock setentista na dose certa, regados a boa cerveja e queijos de tipos diversos, momento nostálgico que remetia a grandes shows que passaram pelo Brasil ao longo dos últimos 30 ou 40 anos, principalmente os de blues e jazz, tempos em que nem as recessões bravas de 1983, 1987, 1990, 1992, 1998 e 2003 ousaram enfurnar a população em casa e dizimar o mercado de shows e espetáculos diversos para garantir as condições sanitárias da sociedade. E eis que ao som de "All Your Love", de Mayall e Clapton, pula na tela do celular uma crônica do amigo e ex-companheiro de Estadão Julio Maria, ilustrada com uma foto recente de Clapton. "Velhos, o peso do mundo" é uma delicada reflexão a respeito da quarentena por conta do vírus mortal e da falta de carinho e respeito por todo o ser humano quando envelhece. Muita gente esquece que ficará velha, e bem velha. Será que tem de ser sempre assim? Reproduzimos abaixo o delicado e sensível texto de Julio Maria publicado no "Estadão.com" na semana passada. (Marcelo Moreira)

John Mayall, o decano dos blueseiros e roqueiros britânicos, que completará 87 ano de idade em 2020

"Ao ouvir que "só os mais velhos" estão sujeitos ao novo coronavírus e que a força jovem e criativa da parte dos vivos que interessa à humanidade deve voltar aos trabalhos agora para que o país não derreta, penso logo em como se sentem esses tais "mais velhos" aos quais o suspiro de alívio da frase se refere. Dizer que a doença "só mata velhos" é como dizer "tudo bem, só morre quem está com o pé na cova" ou "quem vai se abalar com a morte de alguém que já viveu tanto?"

Não é verdade que o novo coronavírus tenha esse apetite exclusivo por pessoas com mais de 70 anos, como os leitos e os respiradores comprovam todos os dias, mas ainda que fosse, que a doença "só" levasse "esses velhos inúteis para o crescimento do país", "essa categoria de gente que não faz a mínima falta em um processo eleitoral pelo simples motivo de que eles nem votam mais depois que completam 70 anos", ainda deveria ser o suficiente para parar um país.

Os velhos se tornaram o peso do mundo, uma massa formada por toneladas de peles flácidas e ossos aerados pronta para ser sacrificada em nome do destravamento da economia. Sem engajamentos sociais que os defendam, até porque o lugar de fala de um líder dessa categoria à parte das questões modernas caberia a alguém que já não consegue mais falar alto e sem a agilidade de raciocínio para os grandes enfrentamentos, os idosos não fariam, como se lê nas casamatas do discurso do ainda presidente Jair Bolsonaro, nenhuma falta. "Isolem os velhos com mais de 60 anos (de um dia para o outro o limite baixou em dez anos) e vamos trabalhar!"

Eles, os velhos, olham então para os lados e desconfiam de que, sim, é com eles mesmo. Chegou sua vez e eles mal perceberam. Estão miserável e irremediavelmente velhos. Suas mãos estão enrugadas, sua memória não é mais precisa e os movimentos são cada dia mais lentos. Velhos e dispensáveis, não importa o quão moderno tentaram ser nos últimos anos fazendo vídeo chamada para os netos aos domingos ou conversando com os filhos sobre o novo disco do Djonga. Se redimindo das durezas do passado deixando o neto dormir com a namorada em casa ou elogiando as tatuagens do filho no pescoço. Eles não fazem mais falta.

Do brilho da juventude ao cuspe do presidente, foi tudo muito rápido, como mostra uma retrospectiva resumida da vida média de um senhor de 80 anos pronto para ser jogado no quarto dos fundos. Entre os zero e os dez anos, não há mais lembranças, apenas cheiros e sensações. Até os 18, os fatos não são muito precisos e começam a surgir algumas fantasias. Não diga mentiras, mas fantasias, aquelas verdades que se esqueceram de acontecer. A partir de então, só fica o que o tempo não apaga.

O primeiro elogio na sala de aula, o primeiro beijo na saída da escola, o primeiro e muitas vezes único tremor de pernas diante de um grande amor. O primeiro sexo, o primeiro LP, o aniversário inesquecível, o dia em que Elis Regina morreu. Quando vêm a linha dos 40 para os 50, os velhos se calam. A fase em que a vida para de dar e começa a tirar é lembrada em silêncio. A mãe se foi, alguns amigos partiram, os filhos se distanciaram e os chefes os trocaram por mão de obra jovem e barata.

Mas os 60 chegam redentores e a vida parece renascer nos netos. Eles trazem a alegria de uma segunda paternidade desprovida de preocupações e inundam as casas de um amor novo e vibrante. Os netos, esses mesmos que devem seguir suas vidas normais nas escolas sem mais poder passar perto do quarto dos fundos para não contaminarem ele, o velho. Há um momento da vida em que morrer por um vírus não é o problema. O que dói é ser assassinado antes de tudo acabar."

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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