Topo

Inspiração italiana reafirma esperança no poder da música e da arte

Combate Rock

28/03/2020 11h41

Marcelo Moreira

A Itália está em perigo e inspira a solidariedade mundial quando são mostradas as imagens da superculta Milão em tempos de calamidade pública e a triste Bérgamo sitiada pelo coronavírus – uma solidariedade que é rara vermos quando ocorrem tragédias na paupérrima África no esquecido por deus Haiti.

Uma imagem tocante que vi nestes dias foi a de um homem de seus 60 e poucos anos, viúvo e a léguas de distância de filhos e netos, com um cálice de vinho, na sacada do pequeno apartamento romano tentando não chorar ao escutar uma versão de "Nessum Durma", trecho da magistral ópera "Turandot", do gênio Giacomo Puccini (1858-1926).

É de cortar o coração, sem dúvida. O distanciamento social no Ocidente, abalando as estruturas de uma economia outrora pujante, mas que sempre vulnerável, inspira manifestações emocionadas de todos os tipos.

A música cura quase todos os males? As performances nas sacadas de apartamentos na Itália, na Espanha e no Brasil até podem aliviar, mas são apenas espasmos pontuais de um mundo em chamas e que está longe da solidariedade que tal catástrofe deveria gerar.

Entretanto, é inacreditável coo a música, muito mais do que qualquer outra manifestação artística, é capaz de despertar os sentimentos mais nobres e emocionar em qualquer circunstância, em qualquer celebração. O que dizer das "Marselhesa", que se tornou o hino nacional francês, com sua letra violenta e seu ritmo marcial-militar inspirador?

FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE

O noa de 1984 foi um ano diferente dos anteriores no Brasil, ano em que a sociedade brasileira conseguiu enterrar o que restava do entulho autoritário da ditadura militar e garantir a realização de eleições presidenciais, ainda que indiretas, no começo do ano seguinte – por pouco a emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas, não foi aprovada.

Também foi o ano do 70º aniversário de fundação do Palmeiras, surgido em 1914 como Palestra Itália para representar a comunidade italiana paulistana.

Em todos os jogos no antigo estádio Palestra Itália-Parque Antártica, o estádio do time, houve celebração por conta da data histórica, tanto no Campeonato Paulista como no Brasileiro.

No início do Brasileiro daquele ano, em um jogo em que surpreendentemente o estádio lotou – o time na época inspirava pouca confiança.

Houve uma equivocada tentativa de missa, ainda que rápida, antes da partida, para celebrar o ano do aniversário de 70 anos. Ali não era lugar para aquilo e pouca gente respeitou ou deu atenção.

Pedidos de silêncio ignorados, o padre saiu sem que o público percebesse. Ninguém viu o pequeno altar ser desmontado. Um minuto depois, "Nessun Dorma" explodiu nos alto-falantes.

Como se Benito Mussolini (ditador italiano fascista, nascido em 1881 e morto em 1945, governou a Itália ditatorialmente por 21 anos) tivesse baixado uma ordem, o barulho foi diminuindo e, dez segundos depois, o silêncio dominou para que a ária fosse ouvida atentamente por quase três minutos.

Ao final, uma reverente salva de palmas seguida por gritos de louvor ao Palmeiras. Meu pai, fã de MPB, boleros e samba, conversava animadamente com alguns de nosso grupo, na arquibancada próximo às piscinas, e simplesmente emudeceu aos primeiros acordes e quando o auge da música chegou.

"Não sei o que é isso, mas é maravilhoso", disse emocionado quando se virou para mim. "Com esse tipo de coisa, não é preciso que se diga nada. É só ir em frente. Faz o dia ficar melhor."

Não para dizer que a música compensou o jogo ruim, apesar da vitória magra do Palmeiras. Mas meu saudoso pai sentenciou de forma categórica: o dia ficou bem melhor.

O rock fez duas grandes reverências a Puccini e a "Turandot", o que me motivou a escutá-las nestes dias compridos e melancólicos de quarentena social – uma versão instrumental emocionante do guitarrista inglês Jeff Beck e outra inspirada e potente perpetrada pela improvável banda norte-americana de heavy metal Manowar, no disco "Warriors of the World", onde o vocalista Eric Adams dá um show de interpretação.

Vou ouvi-las de novo em homenagem ao meu pai e ao romano que tomou vinho, sozinho, em uma sacada triste da capital italiana.

P.S.: "Nessun Dorma" ("Ninguém durma", em italiano) é uma famosa ária do último ato da ópera "Turandot" criada em 1926 por Giacomo Puccini. A ária refere-se à proclamação da princesa Turandot, determinando que ninguém deve dormir: todos passarão a noite tentando descobrir o nome do príncipe desconhecido, Calaf, que aceitou o desafio. Calaf canta, certo de que o esforço deles será em vão.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
Contato: contato@combaterock.com.br

Blog Combate Rock