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Nuno Mindelis mergulha em sua história no magistral 'Angola Blues'

Combate Rock

25/03/2020 06h25

Marcelo Moreira

A música africana sempre estará em todos os corações. A frase foi dita pelo pianista e tecladista Adriano Grineberg em 2013 por conta do lançamento do álbum "Blues for Africa", onde ele compilou várias canções originais de países como Congo e Nigéria para fazer uma obra mágica cantada em dialetos daquele continente.

A frase cabe perfeitamente agora para um trabalho do mesmo quilate e da mesma qualidade. "Angola Blues" é o retorno do guitarrista Nuno Mindelis ao CD autoral após o extraordinário "Angels & Clowns", de 2013, gravado nos Estados Unidos com a preciosa colaboração de Duke Robillard, mestre do blues e homem de confiança de Bob Dylan.

Carregado de sentimentos positivos e um astral bem alto, o guitarrista resgata memórias da infância e da juventude – nascido em Cabinda, em Angola, filho de pais portugueses, viveu no país até 1975, aos 17 anos, quando saiu por conta da guerra civil que assolou o país logo após a independência de Portugal.

"Muitas das canções que ouvi quando criança no rádio eram de artistas angolanos que cantavam no dialeto kimbundu, um dos vários do país. Procurei valorizar a cultura africana e angolana resgatando algumas dessas canções e compondo dentro desse espírito", disse Mindelis em ótima entrevista a Tania Morales, do programa "Noite Total", da rádio CBN SP.

Nuno Mindelis (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Assim como o trabalho de Grineberg, "Angola Blues" surpreende pela extrema musicalidade e pela total compatibilidade com o blues, que é um descendente direto de ritmos negros da África Ocidental que foram introduzidos nos campos agrícolas movidos a escravidão dos Estados Unidos a partir dos séculos XVIII e XIX.

O som é rico, denso e marcante, onde Mindelis, totalmente à vontade e em casa passeando pelos ritmos e melodias angolanas, desenvolve riffs e melodias inusitadas e levando o ouvinte a um mundo muito pouco conhecido no Brasil.

Se "Blues for Africa", de Grineberg, embute um certo espiritualismo por conta das experiências pessoais do artista, "Angola Blues" também traz um conceito filosófico, digamos assim. Não se trata apenas de um resgate de m passado marcante de Mindelis na terra natal, mas inclui algo mais profundo, ou amplo.

"Eu sou da Terra. Todos nós somos terráqueos e deveríamos circular livremente pelo planeta sem restrições de conceitos políticos de fronteiras ou preconceitos ideológicos. Tem a ver com liberdade e com ideias de celebração, de felicidade", afirmou ao mesmo programa da CBN.

Isso tem muito a ver com a própria trajetória de vida de Mindelis, um artista reconhecido internacionalmente e um estilista do blues.

Depois de escapar da guerra em Angola, morou um ano no Canadá longe de parte da família até aportar no Brasil pouco tempo depois para reencontrar o pai, no Rio de Janeiro. Foi o que bastou para adotar o Brasil como pátria e engatar de vez a carreira musical enquanto exercia várias funções no mercado de trabalho, entre elas trabalhar em uma empresa aérea.

Dividindo os louros de principal nome do blues brasileiro com o guitarrista André Christóvam e a banda carioca Blues Etílicos, são mais de 30 anos de carreira musical marcada por milhões de referências e uma diversidade estonteante para quem está acostumado à amarras dos gêneros musicais.

Sua guitarra limpa, delicada e elegante vai do blues tradicional ao blues rock texano, passado pelos ritmos eletrônicos, pelo jazz e pela música brasileira com autoridade. Seu respeito pela cultura nacional e sua música é tanta que chega a irritar tamanho é o seu conhecimento.

"Tive de abandonar uma coleção de mais de 2 mil LPs em Luanda, capitla de Angola, por causa da guerra. Tinha muita, mas muita coisa de música brasileira que adquiri lá pelos anos 60. Gostava demais dos trabalhos de Jorge Ben (hoje Benjor), por exemplo", diz o músico.

Evidentemente, referências existem aos montes em "Angola Blues". Guitarras e teclados convivem em grande harmonia, omo em "Cabinda", que tem um ritmo africano-latino contagiante e solos de guitarra de extremo bom gosto. O dueto com a cantora angolana Jéssica Areias é o ponto alto de refinamento da canção.

Essa também é uma característica da ótima "Muxima", que traz a presença de Flora Purim, brasileira radicada há décadas nos Estados Unidos, onde é reconhecida como um ícone do jazz e da world music.

A canção é um autêntico blues em sua concepção, mas cresce, e muito, com a adição de um molho africano e o idioma kimbundu, ganhando uma dramaticidade a grandes clássicos soul e rhythm and blues de Nova Orleans. A sofisticação da voz de Flora e dos solos de guitarra transformam completamente o ambiente de uma canção que poderia ser somente mais um blues.

Os mais atentos à carreira de Mindelis certamente observaram o inicio do mergulho no som africano, digamos assim, em 2018, quando ele lançou um dico ao vivo gravado em um festival polonês de blues.

"Mona Ki Ngi Xica", que está no novo CD, apareceu pela primeira vez ali, assim como "Nbiri Nbiri" misturada em um medley esperto que encantou a plateia polonesa.

Se ao vivo a energia e a festa que ela emana são contagiantes, no estúdio se torna um blues quase épico de inspiração claptoniana em sua introdução. Se houvesse uma música a ser escolhida como símbolo de um sincretismo espiritual e sonoro entre blues e a música africana, "Mona Ki Ngi Xica" seria forte candidata.

E a festa sobe o tom com o quase blues rock "Brinca N'Areia", que flerta com vários ritmos africanos e caribenhos, com seu refrão único em português que celebra uma paixão do músico, a pria, dos tempos em que morou na capital angolana, Luanda.

"Monami Zeca" tem um balanço irresistível, com uma mistura gostosa de samba rock, blues e soul music, com algum tempero usado à exaustão pelos brasileiros do Bixiga 70. É mais uma faixa contagiante e que vai cair nas graças do público nos shows.

"País Tropical" é o seu tributo ao então Jorge Ben. A versão blueseira é cheia de suingue, reverenciando a original na percussão cariocamente malandra e precisa nos solos de guitarra maneiros, como se diz em alguns botecos do Rio. É um respiro da africanidade que caiu bem como encerramento do trabalho

"É um passo importante e uma realização musical poder abordar esses temas, algo que sempre quis fazer", comentou o guitarrista em entrevista ao Combate Rock na época do lançamento do CD ao vivo.

Mais do que uma reparação histórica de uma lacuna abissal , ouvir blues africano tornou-se uma necessidade cultural diante de um mercado musical e fonográfico que tenta se reerguer e reinventar. Pouco difundida no Brasil, a música africana ganha um impulso gigante com o ótimo álbum "Angola Blues".

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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