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Leitura volta ser um ato subversivo - e perigoso

Combate Rock

12/02/2020 06h49

Marcelo Moreira

Ler se tornou um ato subversivo e perigoso nestes tristes tempos de trevas em nossa sociedade. Quando ler se torna um ato perigoso, os seres inomináveis do autoritarismo ganham proeminência e a censura se torna a melhor arma para disseminar o silêncio.

As táticas são insidiosas. Há os explícitos, que não se acanham e nem se envergonham ao mandar recolher livros em bibliotecas e públicas e escolas, como o governo asqueroso de Rondônia tentou fazer na semana passada.

Diante da péssima repercussão, o governador ultraconservador, militar e religioso, que é do partido que já abrigou o presidente Jair Bolsonaro, recuou e desautorizou a medida, mas apenas de forma provisória, pelo que deu a entender.

Entre os autoritários discretos, provavelmente os mais perigosos e repudiáveis, está um coronel paulista que trabalha em alto cargo na área penitenciária do Estado.

O coronel Henrique Pereira de Souza Neto é o diretor executivo da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel – Funap, entidade ligada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária que coordenada projetos em presídios do Estado.

Ele recusou uma doação de um lote de livros para detentos e vetou vários nomes de escritores, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Exigiu uma justificativa para a escolha dos autores de livros a serem doados e, mesmo assim, rejeitou vários livros.

Em nota ao jornal, o governo estadual limitou-se apenas az dizer que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor sobre os livros escolhidos pelo projeto.

Traduzindo, o governo estadual endossa o procedimento absurdo de seu funcionário militar e que não vê problemas em um militar ter o poder de veto e determinar o que detentos podem ou não ler dentro de programas oficiais do Estado.

Resumindo: o governo de João Doria (PSDB) apoia e incentiva a censura em programas culturais mantidos pela administração pública estadual. Uma monstruosa e criminosa vergonha.

O "Remissão em Rede" tem como objetivo estimular a leitura através da remissão da pena dos presos. Cada livro lido – com uma resenha escrita – representa menos quatro dias de prisão. Se for lido um título por mês, é possível reduzir 48 dias de pena por ano.

Reprodução da capa da edição brasileira do livro "Liberdade de Expressão: Dez Princípios para Um Mundo Interligado", de Timothy Garton Ash

Isso é censura, embora camuflada e dissimulada. Ninguém é obrigado a aceitar doação do que for e de quem quer que seja. Entretanto, diante da falência educacional e cultura pouco disseminada neste país, ainda mais dentro da esfera pública, e no mínimo absurdo uma administração recusar uma doação.

Só uma mente insana é capaz de recusar, sob qualquer alegação, a doação de um livro de Gabriel Garcia Márquez ou de Albert Camus, nomes vetados pelo coronel, cuja formação educacional e profissional é desconhecida.

De forma explícita ou meio na surdina, a censura avança em todos os campos de nossa sociedade, seja no Estado mais rico da federação, seja em um dos mais pobres e distantes dos centros financeiros e de poder.

Como quase dois terços dos governado estaduais e das capitais estão em mãos de políticos conservadores e ultraconservadores, com no mínimo simpatias pelo lamentável governo Jair Bolsonaro, podemos esperar pelo recrudescimento das campanhas contra a cultura e pelo avanço da censura.

Na verdade, diante da imensidão do Brasil, é bem provável que milhares de ações insidiosas como essas estejam em curso desde o começo de 2019 e continuam despercebidas.

Pouca gente se deu conta de que, no ano passado, uma exposição fotográfica que mostrava os protestos nas ruas brasileiras desde 2013 foi censurada em Guarulhos, na Grande São Paulo, em espaço da prefeitura.

Várias fotos alusivas a protestos contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff foram suprimidas depois de iniciada a exposição.

Também houve pouca ou nenhuma repercussão quando da absurda censura ocorrida na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Uma exposição de cartuns e charges acabou cancelada por conter peças críticas ao presidente Bolsonaro, em lamentável reclamação de vereadores iletrados e medievais.

Enquanto a liberdade de expressão vai lentamente sendo solapada e corroída, roqueiros contaminados pelo vírus da burrice e do analfabetismo (real e funcional) manifestam apoio a esse tipo de medida, bem como a vários tipos de atentados aos direitos civis e humanos.

Ou seja, artista defendendo abertamente a censura e perseguição a obras de arte, algo que fatalmente se voltará contra o próprio trabalho. É como se os cachorros defendessem a carrocinha e os judeus apoiassem o nazismo e os campos mortais de concentração.

A cada barbaridade diária perpetrada por Bolsonaro contra índios, negros, gays, soropositivos, ativistas ambientais, políticos oposicionistas, artistas e jornalistas críticos ao governo e ao conservadorismo, entre outras pessoas, uma quantidade absurda e cada vez maior de imbecis dentro da música, do rock e do metal aplaude.

A cada atentado ao bom senso, à cultura, ao entretenimento, às artes e à educação essa massa estúpida urra, elogiando a burrice e bradando por medidas ilegais e anticonstitucionais em nome da "moral, bons costumes e deus".

Essa gente idiota diz que gosta de rock, mas é totalmente incapaz de entender o que está acontecendo e de perceber o perigo, de que não escapará da sanha autoritária pela censura do governo de trevas de Bolsonaro e dos governadores e prefeitos que o apoiam. É uma marcha inexorável em direção à burrice e à ignorância.

Isso tudo nos remete a uma charge fantástica de Laerte a respeito de um leitor, com um livro na mão, cercado por uma horda de bárbaros, enquanto ao megafone um deles vomita: "Você está cercado de ignorantes! Saia deste livro com as mãos para cima!" Não há resumo melhor do que esse sobre a era em que vivemos.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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