Leitura volta ser um ato subversivo - e perigoso
Marcelo Moreira
Ler se tornou um ato subversivo e perigoso nestes tristes tempos de trevas em nossa sociedade. Quando ler se torna um ato perigoso, os seres inomináveis do autoritarismo ganham proeminência e a censura se torna a melhor arma para disseminar o silêncio.
As táticas são insidiosas. Há os explícitos, que não se acanham e nem se envergonham ao mandar recolher livros em bibliotecas e públicas e escolas, como o governo asqueroso de Rondônia tentou fazer na semana passada.
Diante da péssima repercussão, o governador ultraconservador, militar e religioso, que é do partido que já abrigou o presidente Jair Bolsonaro, recuou e desautorizou a medida, mas apenas de forma provisória, pelo que deu a entender.
Entre os autoritários discretos, provavelmente os mais perigosos e repudiáveis, está um coronel paulista que trabalha em alto cargo na área penitenciária do Estado.
O coronel Henrique Pereira de Souza Neto é o diretor executivo da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel – Funap, entidade ligada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária que coordenada projetos em presídios do Estado.
Ele recusou uma doação de um lote de livros para detentos e vetou vários nomes de escritores, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Exigiu uma justificativa para a escolha dos autores de livros a serem doados e, mesmo assim, rejeitou vários livros.
Em nota ao jornal, o governo estadual limitou-se apenas az dizer que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor sobre os livros escolhidos pelo projeto.
Traduzindo, o governo estadual endossa o procedimento absurdo de seu funcionário militar e que não vê problemas em um militar ter o poder de veto e determinar o que detentos podem ou não ler dentro de programas oficiais do Estado.
Resumindo: o governo de João Doria (PSDB) apoia e incentiva a censura em programas culturais mantidos pela administração pública estadual. Uma monstruosa e criminosa vergonha.
O "Remissão em Rede" tem como objetivo estimular a leitura através da remissão da pena dos presos. Cada livro lido – com uma resenha escrita – representa menos quatro dias de prisão. Se for lido um título por mês, é possível reduzir 48 dias de pena por ano.
Isso é censura, embora camuflada e dissimulada. Ninguém é obrigado a aceitar doação do que for e de quem quer que seja. Entretanto, diante da falência educacional e cultura pouco disseminada neste país, ainda mais dentro da esfera pública, e no mínimo absurdo uma administração recusar uma doação.
Só uma mente insana é capaz de recusar, sob qualquer alegação, a doação de um livro de Gabriel Garcia Márquez ou de Albert Camus, nomes vetados pelo coronel, cuja formação educacional e profissional é desconhecida.
De forma explícita ou meio na surdina, a censura avança em todos os campos de nossa sociedade, seja no Estado mais rico da federação, seja em um dos mais pobres e distantes dos centros financeiros e de poder.
Como quase dois terços dos governado estaduais e das capitais estão em mãos de políticos conservadores e ultraconservadores, com no mínimo simpatias pelo lamentável governo Jair Bolsonaro, podemos esperar pelo recrudescimento das campanhas contra a cultura e pelo avanço da censura.
Na verdade, diante da imensidão do Brasil, é bem provável que milhares de ações insidiosas como essas estejam em curso desde o começo de 2019 e continuam despercebidas.
Pouca gente se deu conta de que, no ano passado, uma exposição fotográfica que mostrava os protestos nas ruas brasileiras desde 2013 foi censurada em Guarulhos, na Grande São Paulo, em espaço da prefeitura.
Várias fotos alusivas a protestos contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff foram suprimidas depois de iniciada a exposição.
Também houve pouca ou nenhuma repercussão quando da absurda censura ocorrida na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Uma exposição de cartuns e charges acabou cancelada por conter peças críticas ao presidente Bolsonaro, em lamentável reclamação de vereadores iletrados e medievais.
Enquanto a liberdade de expressão vai lentamente sendo solapada e corroída, roqueiros contaminados pelo vírus da burrice e do analfabetismo (real e funcional) manifestam apoio a esse tipo de medida, bem como a vários tipos de atentados aos direitos civis e humanos.
Ou seja, artista defendendo abertamente a censura e perseguição a obras de arte, algo que fatalmente se voltará contra o próprio trabalho. É como se os cachorros defendessem a carrocinha e os judeus apoiassem o nazismo e os campos mortais de concentração.
A cada barbaridade diária perpetrada por Bolsonaro contra índios, negros, gays, soropositivos, ativistas ambientais, políticos oposicionistas, artistas e jornalistas críticos ao governo e ao conservadorismo, entre outras pessoas, uma quantidade absurda e cada vez maior de imbecis dentro da música, do rock e do metal aplaude.
A cada atentado ao bom senso, à cultura, ao entretenimento, às artes e à educação essa massa estúpida urra, elogiando a burrice e bradando por medidas ilegais e anticonstitucionais em nome da "moral, bons costumes e deus".
Essa gente idiota diz que gosta de rock, mas é totalmente incapaz de entender o que está acontecendo e de perceber o perigo, de que não escapará da sanha autoritária pela censura do governo de trevas de Bolsonaro e dos governadores e prefeitos que o apoiam. É uma marcha inexorável em direção à burrice e à ignorância.
Isso tudo nos remete a uma charge fantástica de Laerte a respeito de um leitor, com um livro na mão, cercado por uma horda de bárbaros, enquanto ao megafone um deles vomita: "Você está cercado de ignorantes! Saia deste livro com as mãos para cima!" Não há resumo melhor do que esse sobre a era em que vivemos.
Sobre os Autores
Sobre o Blog
Contato: contato@combaterock.com.br
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.